Criada em resposta a genocídios de indígenas e denúncias de corrupção, Funai completa 50 anos em estado de “crise permanente”. Indígenas enfrentam aumento da violência e resistência organizada no centro do poder.Desde o ataque mais violento, há um mês, os 300 moradores da Terra Indígena (TI) Morro dos Cavalos, em Santa Catarina, se revezam numa vigilância 24 horas por dia. Uma moradora de uma das duas aldeias da TI teve a mão esquerda decepada e cortes por todo corpo. Depois da agressão, os criminosos deixaram a casa da vítima, de 59 anos, sem roubar nada.
O episódio espalhou medo na reserva, que aguarda desde 2008 o reconhecimento definitivo da área ocupada por indígenas guarani. “Os ataques dentro da aldeia começaram em 2012”, diz Kerexu Yxapyry, filha de vítima e liderança local. “Não sabemos quem fez isso com minha mãe, mas sabemos dos interesse de políticos nas nossas terras”, afirma Yxapyry.
A TI Morro dos Cavalos fica em Palhoça, no litoral catarinense, a 30 quilômetros de Florianópolis. Em 2014, o estado de Santa Catarina pediu que a Justiça anulasse a demarcação do território indígena.
“Estamos remando contra todos os órgãos. A gente se sente traído pela Funai, que tinha a função de proteger os indígenas. Na parte final do processo de homologação da TI, a gente se sente muito desamparado”, diz Yxapyry.
A queixa não é diferente em outras regiões do país. Criada em 1967 para proteger e promover os direitos dos povos indígenas no Brasil, a Funai chega, nesta terça-feira (05/12), aos 50 anos com redução de praticamente metade de seu orçamento e cortes em 51 escritórios regionais – o que compromete a segurança das aldeias.
“Todas as lideranças sentem o enfraquecimento da Funai, que sempre esteve presente no monitoramento dos territórios”, afirma Nara Baré, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia (Coiab), maior organização indígena do país. Sem recursos e sem apoio, os povos acabam recorrendo à autodemarcação e ao monitoramento próprio, expostos à violência de madeireiros, garimpeiros e grileiros ilegais.
Para Márcio Santilli, sócio-fundador do Instituto Socioambiental (ISA) e ex-presidente da Funai, o órgão sempre viveu aos trancos e barrancos. “É uma instituição em crise permanente: atravessou os 50 anos em crise, com insuficiência de recursos e de quadros de pessoal”, avalia.
Escândalos e ditadura
Em 5 de dezembro de 1967, a lei de criação da Funai tentava dar fim a uma sucessão de escândalos em plena ditadura militar. A Fundação substituiria o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), abalado por acusações de genocídio de indígenas, corrupção e ineficiência. O SPI fora instituído em 1910 para “catequese e civilização dos índios”, destaca Antonio Carlos de Souza Lima, historiador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Aos poucos, a Funai começou a incorporar dados e, pela primeira vez, os indígenas começavam a aparecer no mapa do Brasil. A partir do Estatuto do Índio, de 1973, depois reforçado pela Constituição de 1988, começou a demarcação de terras.
Uma trajetória crítica desde o início, na análise de Marco Antonio Delfino, procurador do Ministério Público Federal do Mato Grosso do Sul. “A rigor, os processos de demarcação foram condicionantes socioambientais para que o governo tivesse acesso a recursos. Não foi algo que foi gerado dentro do governo”, pontua.
Desde o início dos anos de 1900, obras de construção de ferrovias e de sistemas de comunicação no interior do país rendiam manchetes internacionais sobre conflitos e mortes de indígenas, que resistiam em seus territórios. Pressionado por instituições financeiras, o Brasil se viu obrigado a tentar apaziguar a situação, o que culminou na criação da Funai.
Violência nas manchetes
Mais de cem anos depois, a violência contra indígenas ainda ocupa espaço na imprensa internacional. Alguns casos recentes vêm do Mato Grosso do Sul, estado que tem a segunda maior população indígena do Brasil.
Há décadas, os guarani-kaiowá tentam retornar ao local de onde foram expulsos. “Existem poucos casos em que o governo conseguiu fazer devolução de território, como é o que precisa ser feito no Mato Grosso do Sul”, comenta Delfino. “Quando há resistência política e econômica é quando você testa o compromisso governamental com a Constituição. E no estado, nada avançou. O governo desrespeita a Constituição”, critica o procurador.
Segundo levantamento do MPF, as lavouras de soja e cana no estado são, respectivamente, dez e trinta vezes maiores que a soma das terras ocupadas por indígenas. Em 2007, o órgão firmou um acordo com a Funai para agilizar a demarcação. Os estudos, que deveriam ter sido entregues em 2009, sequer foram elaborados.
Em todo o país, estima-se que dois terços das demarcações territoriais estejam bem encaminhadas. “Embora existam muitos problemas com reconhecimento de terras, isso dá uma base física mais favorável para os indígenas lidarem melhor com os problemas do futuro”, comenta Santilli.
A posse dá segurança para uma inserção maior nas discussões políticas – atualmente, mais de 160 representantes indígenas foram eleitos como vereadores e prefeitos. “Historicamente já deu para aprender: eles não vão desaparecer. Apesar de todas as maldades que foram feitas, os indígenas aguentaram de tudo nesses 500 anos e agora estão se reconstituindo demograficamente”, pontua Santilli.
Por outro lado, a resistência ao reconhecimento dos direitos indígenas também deixou de ser periférica e passou a se organizar no centro do poder. “Antigamente, isso acontecia nos estados, havia uma elite agrária local que resistia ao processo de demarcação. Agora, essa elite se deslocou, e é central. As pressões são federais”, destaca o procurador Delfino.
Recursos cobiçados
No estado do Amazonas, a Terra Indígena Alto do Rio Negro foi uma das primeiras a ser delimitada oficialmente. Mas a área nunca saiu do mapa das grandes mineradoras. Tradicionalmente habitada pelas etnias baré, arapáso, karapanã, barasána e wanana, ela tem 80 mil quilômetros quadrados e, no subsolo, abriga uma das maiores reservas mundiais de nióbio – metal cobiçado pelas indústrias automobilística, aeroespacial e aeronáutica.
“Além dos interesses das mineradoras, nossas terras sofrem ameaça por causa do potencial energético muito grande”, diz Nara Baré, da Coiab, que nasceu na região. Apesar do aumento da tensão, a proteção diminuiu, como relatado por lideranças em todo o país.
Para Nara, o sucateamento da Funai faz parte do que ela chama de “estratégia orquestrada” do governo federal. “A partir do momento que indígenas são tratados como ‘entrave’ ao chamado ‘progresso’, e como não conseguiram nos dizimar, vemos uma ação do governo dentro de ministérios e órgãos para nos enfraquecer”, afirma.
A Funai não respondeu às perguntas da DW Brasil. Em maio, o general do Exército Franklimberg Ribeiro de Freitas assumiu a presidência interina do órgão.
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Redação/Rádio Terena