Cleonice Pankararu tinha dois anos quando essa história começou. Ela e a família viviam em uma aldeia em Pernambuco, ameaçada pela construção da Hidrelétrica de São Francisco. Os integrantes da aldeia não concordaram com a construção e então, num dia no final dos anos 60, o avô de Cleonice foi amarrado por guardas e sumiu. Ali começou a viagem em busca de Antônio Pankararu.
A sua filha única juntou a família e saiu a pé pelo país. Foram dez anos caminhando por estradas da Bahia, Minas, Goiás e Distrito Federal procurando pistas do avô. “Daí alguém comentou com minha mãe que existia um presídio de índios em Minas”, conta. A família pankararu chegou em terras mineiras no início da década de 70, por motivos muito ruins: o avô estava encarcerado no presídio indígena criado pelo governo militar, o Reformatório Krenak.
Antônio Pankararu foi um dos 100 índios de todo o país presos no Reformatório Krenak, construído na cidade de Resplendor (MG), conforme revela o relatório final da Comissão da Verdade de Minas Gerais (COVEMG). A comissão investigou violências e outras violações de direitos cometidos entre os anos de 1946 e 1988. Trouxe à tona a forma agressiva, e até o momento inexplicável, com que o governo tratava os indígenas.
As pesquisas dividem a atitude do governo brasileiro em duas fases. Na primeira delas o Estado teria acobertado órgãos e pessoas que não respeitavam os direitos dos indígenas. Nessa época, comunidades perdiam suas terras de forma ilegal e os governos faziam “vistas grossas”. Na segunda fase, já sob o regime militar, o governo reestruturou a política e criou suas próprias ferramentas de regulação e repressão às comunidades.
Um dos motivadores dessa mudança foi o dossiê “Relatório Figueiredo”.
Tortura e corrupção viram escândalo
Um procurador-geral, Jader de Figueiredo Correia, recebe a tarefa de investigar o Serviço de Proteção ao Índio. O SPI foi criado em 1910 e tinha a função de dar assistência e “inserir” o índio na sociedade. Em 1968, o relatório é divulgado. Mostrava torturas contra indígenas, venda de crianças, trabalho e prostituição forçada, extermínio de tribos através de dinamites e disseminação de vírus, além de inúmeros casos de corrupção. A repercussão foi internacional. Jornais exigiram que a Nações Unidas (ONU) investigasse os crimes, que aconteceram majoritariamente entre 1961 a 1967.
Assim, o regime militar resolve reorganizar a política indigenista. Em 1969 cria a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e em Minas Gerais cria as duas principais instituições de repressão contra indígenas de todo o país: o Reformatório Krenak e a Guarda Rural Indígena (GRIN).
LINHA DO TEMPO | Órgãos governamentais indígenas
1910: Criação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI)
1911: Criação do Posto Indigenista Guido Marlière / Krenak, no município de Resplendor (MG)
1941: Criação do Posto Indígena Mariano de Oliveira / Maxacali, no município de Santa Helena (MG)
1968: Publicação do Relatório Figueiredo
1969: Criação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI)
1969: Criação da Guarda Rural Indígena (GRIN)
1969: Criação do Reformatório Krenak
1972: Criação da Fazenda Guarani
Cara nova, serviço velho
“Na margem esquerda do Rio Doce funciona agora um posto indígena da FUNAI. Lá dentro, dois cabos da PM e cinco soldados tomam conta do velho Jacó e da velha Sebastiana e de mais 50 índios de todo Brasil, considerados rebeldes. Para o velho Jacó e a velha Sebastiana, não há mais esperanças: só sairão de lá mortos. […] O significado exato da palavra ‘rebelde’, aplicado aos índios, até agora ninguém entendeu”, descreve reportagem do jornal Correio da Manhã, de abril de 1970.
Como afirma o relato, as violências continuaram. O relatório da Covemg mostra que o Reformatório Krenak recebia indígenas de todo o país e dizia “reeducá-los”, mas na verdade funcionava como prisão para índios acusados de vadiagem, embriaguez, desentendimento com chefes militares ou que resistiam às expulsões de suas terras. O mapeamento da comissão mostra que foram presos 104 indígenas, de 16 etnias diferentes.
A pedagoga Geralda Chaves Soares, que era do Conselho Missionário, morou com os indígenas Maxacali por 8 anos. Ela lembra de um Maxacali preso no Reformatório e que foi obrigado a tomar leite fervendo e água gelada, o que teria danificado seu estômago. “Quando ele voltou estava vomitando, não conseguia mais se alimentar e morreu dessa forma”, lembra. Os relatos sobre a “Prisão Krenak”, como os índios a chamavam, são também de trabalho forçado, fome, frio e maus-tratos contínuos.
O relatório aponta que a prisão era comandada pela Polícia Militar, sendo coordenada pelo capitão Manoel Pinheiro. Isso, na opinião de Marco Túlio Antunes Gomes, mestrando em história e pesquisador da Covemg por dois anos, é um símbolo da militarização do serviço indigenista.
“A questão indígena sempre esteve muito próxima à questão de ordem, de segurança nacional. O homem considerado o grande patrono da questão indígena é o Cândido Rondon, que é um militar. Mas a partir de 69 há uma presença maior dos militares assumindo cargos na administração”, analisa Marco Túlio.
Ditadura ensina indígenas a torturar
Na criação da Guarda Rural Indígena (GRIN), também em 1969, o governo militar fez diferente: formou uma corporação apenas de índios. Foram selecionados 84 indígenas de todo o país e enviados a um batalhão de Belo Horizonte, onde receberam treinamento militar e aulas de educação “cívica e moral”. Um vídeo da formatura da primeira turma da GRIN surpreende. Dois indígenas carregam um terceiro em um pau de arara – técnica de tortura, apresentando às autoridades o que tinham aprendido a fazer.
Geralda acredita que a cultura violenta da GRIN se entranhou nas aldeias e indígenas passaram a punir “culpados” com suas próprias mãos. “Me falaram que uma mulher foi presa porque vendeu cachaça para os índios. Ela foi levada pra aldeia, obrigada a trabalhar nua e parece que era estuprada”, conta. “Ensinaram para os índios que tinham que bater e torturar”, critica a missionária.
Que fim levaram?
O pesquisador Marco Túlio analisa que a ditadura promoveu o etnocídio de povos indígenas, como no caso dos índios Xacriabá e dos Krenak, duas das etnias que a Covemg conseguiu estudar mais a fundo. “Houve uma enorme perda de territórios, e por conta dos deslocamentos, eles tiveram que esconder sua cultura para sobreviver, seu idioma, sua religião. Foi um extermínio físico e cultural”, denuncia. Apesar disso, ele enfatiza que essas culturas foram resistentes e não desapareceram.
A maioria dos indígenas presos no Reformatório Krenak e depois transferidos para a Fazenda Guarani não tiveram a chance de voltar para seus povos. A família pankararu, por exemplo, permaneceu em Minas e fundou as comunidades Atukaré, na cidade de Coronel Murta, e Cinta Vermelha Jundida, em Araçuaí. Seguem cultivando suas tradições e a luta, que parece acompanhá-los por toda a vida. “Meio século depois, nossa questão continua sendo o território”, lastima Cleonice.
Comissão recomenda demarcação de terras e que investigações continuem
Ao final de dois anos de pesquisas, a Comissão da Verdade de Minas Gerais divulgou 14 orientações, principalmente para o governo, com o objetivo de reparar danos causados aos indígenas. Na continuação das apurações, recomenda-se a criação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade, a investigação das perseguições aos apoiadores da luta indígena e das mortes de Waldomiro Maxacali e Osmino Maxacali, assassinados em 1982. Pede-se também o envio do relatório à Procuradoria Regional do Ministério Público Estadual para instaurar inquéritos e tomar as medidas cabíveis.
A conclusão das demarcações das terras indígenas também é preocupação da Covemg, já que a maioria dos conflitos tem relação com a terra. A comissão recomenda que o Estado brasileiro faça um pedido público de desculpas aos indígenas, por ter sido parte no roubo dos seus territórios e no desrespeito de seus direitos. E que a Lei 11.645 seja cumprida e as escolas comecem a ensinar sobre a triste violação dos povos indígenas no Brasil.
Com informações brasildefato.com.br
Redação/Rádio Terena