Políticos de Mato Grosso teriam tomado terras indígenas durante a ditadura

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Dois ex-governadores de Mato Grosso e um ex-senador da República foram acusados de esbulho de terras indígenas durante a ditadura militar. Os nomes de Fernando Corrêa da Costa, Filinto Muller e Pedro Pedrossian aparecem no Relatório Figueiredo, um dossiê de 7 mil páginas que trata de crimes contra indígenas cometidos naquele período.

O Relatório foi elaborado pelo procurador Jader de Figueiredo Correia a pedido do ministro do Interior, Albuquerque de Lima, em 1967. O documento ficou desaparecido por 40 anos até ser redescoberto em 2013. Grande parte dos crimes relatados ocorreram em Mato Grosso.

Em um dos depoimentos registrados no dossiê o chefe da 6ª Inspetoria do Serviço de Proteção Indígena (SPI), Hélio Jorge Bucker, acusa o ex-governador Pedro Pedrossian de ter desapropriado 38 mil hectares da Colônia Tereza Cristina, em Rondonópolis, que pertencia a etnia Bororo.

“Em 1964 na Chefia da 6ª Inspetoria Regional do SPI, em Cuiaba-MT, inteirei-me da orgia espoliativa das terras indígenas em todo o território matogrossense. Repartiam-nas como um bolo, entre os amigos ricos, correligionários políticos e as autoridades, a frente do esbulho estava a cúpula diretiva do Governo Estadual, políticos influentes (desde cabo eleitoral a suplente de senador) e os ricos, que sempre querem amealhar mais”, diz trecho da carta escrita por Hélio Bucker em outubro de 1967 e endereçada a Jader de Figueiredo.

Entre amigos e parentes

O crime de esbulho teria sido efetivado através de um convênio assinado por Pedrossian com o ministro da Agricultura, Nei Braga. O contrato foi aprovado pela Assembleia Legislativa em 4 de agosto de 1966. A justificativa era de que as terras dos Bororos seriam usadas para colonização e que o “manancial energético” da região seria aproveitado.

Pelo acordo, o estado ficaria com 30 mil dos 65 mil hectares pertencentes aos indígenas. Em troca, o SPI – responsável legal pela administração das terras – receberia um trator, 100 novilhas e cinco touros reprodutores.

Mas durante a medição da área a ser dividida o estado abocanhou mais oito mil hectares da colônia. O SPI protestou judicialmente contra a mudança, mas obteve apenas vitórias pontuais. A área, segundo Bucker, foi partilhada entre amigos, parentes e correligionários dos políticos mato-grossenses.

Contradição familiar

Mesmo antes do convênio, o governo já distribuía parte das terras indígenas. O Departamento de Terras de Mato Grosso, órgão ligado a Secretaria de Agricultura, teria emitido títulos de propriedade dentro da reserva indígena durante a gestão do governador Fernando Corrêa da Costa.

 

Mapa Tereza Cristina
Mapa da Colônia Indígena Tereza Cristina elaborado pelo funcionário do SPI, Ramis Bucair, durante expedição na região. Bucair dividiu no mapa as áreas dos supostos invasores que avançaram sobre à propriedade indígena

Mapa da Colônia Indígena Tereza Cristina elaborado pelo funcionário do SPI, Ramis Bucair, durante expedição na região. Bucair dividiu no mapa as áreas dos supostos invasores que avançaram sobre à propriedade indígena

A irregularidade apontada configura uma contradição histórica, já que o pai de Fernando Corrêa, o ex-governador Antônio Corrêa da Costa, foi quem regularizou a área em 1897, após as demarcações feitas pelo Marechal Cândido Mariano Rondon.

Parte do material cartográfico elaborado por Rondon serviu como base para que o engenheiro Ramis Bucair, então funcionário do SPI, elaborasse um mapa da Colônia Tereza Cristina, sobrepondo o nome dos supostos invasores. Tanto o convênio de Pedrossian como os títulos expedidos pelo governo Corrêa da Costa resultaram na tomada da área por não-índios.

Segundo o Relatório Figueiredo, foram beneficiados os ex-ministros do Tribunal de Contas do Estado, Manuel José de Arruda e João Moreira de Barros; o suplente de senador Filinto Muller, Gastão de Matos Muller, o deputado Ranulfo Marques Leal; o chefe de gabinete de Pedrossian, Nilo Ponce de Arruda Filho; o oficial de Exército Osvaldo Moreira Figueiredo e vários membros da família Leal, parentes do então Secretário de Justiça, Leal de Queiróz.

Telegramas de Muller

A tomada das terras dos Bororos foi efetivada graças a suposta interferência de Filinto Muller. Segundo o Relatório Figueiredo, Muller telegrafou para o diretor do SPI, o major-aviador Luiz Vinhas Neves, pedindo que o órgão deixasse de mover ações na Justiça contestando os títulos expedidos pelo Departamento de Terras. A interferência deu certo e fez com que Vinhas Neves encaminhasse a mensagem ao chefe do SPI em Cuiabá. 

“Recebi outro telegrama do senador Filinto Muller solicitando que cessasse a intervenção na área de Tereza Cristina visto que cinquenta proprietários de terras estão com suas lavouras paradas”, é o que diz a mensagem transcrita do telegrama enviado pelo major a Hélio Jorge Bucker.

Relatório Figueiredo

Sob a liderança do procurador Jader de Figueiredo quatro funcionários do Ministério do Interior percorreram 130 postos indígenas e 16 mil quilômetros por todo país para investigar denúncias de tortura, massacres, estupros, esbulho de terras e recursos indígenas, além de outras acusações.

O relatório foi analisado e aprovado e deu vazão para a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito que também investigou os crimes apurados. Com a promulgação do Ato Institucional 5, que endureceu ainda mais a ditadura militar, os efeitos do documento foram enfraquecidos e nenhum suspeito foi indiciado ao culpado. O governo ignorou o pedido de demissão de 33 funcionários e suspensão de outros 17.

Somente em 2013, 45 anos depois de concluído, é que o dossiê foi reencontrado. Até então, imaginava-se que teria sido queimado durante um incêndio supostamente criminoso no Ministério da Agricultura. O relatório foi encontrado no Museu do Índio no Rio de Janeiro de forma completamente ocasional por Marcelo Zelic, presidente do grupo Tortura Nunca Mais.

O calhamaço foi analisado pela reportagem do LIVRE durante uma semana. Nele, encontra-se diversos registros da história política de Mato Grosso e principalmente de como a causa indígena pouco evoluiu no estado. Aqui, convive-se com um vergonho histórico de conflitos e chacinas onde a briga por terras, o ódio e o preconceito funcionam como motores de uma guerra inútil.

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