Prefeito indígena mostra novos rumos após herdar município “quebrado”.

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Foto: Divulgação

Ele é um dos seis prefeitos brasileiros considerados índios ou descendentes eleitos em 2016. Naquela eleição, nas 5.568 cidades do país que concorreram ao cargo de prefeito, com 16.565 candidatos, dos quais 28 se apresentavam como índios – entre eles Isaac Piyãko, de 46 anos de idade.

Situado no interior do Acre, na parte mais ocidental do país, fronteira com o Peru, Marechal Thaumaturgo é um dos mais pobres e isolados municípios do país. O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), no censo de 2008, diz que o PIB (Produto Interno Bruto) do município é de 5,8 mil, o que o coloca no grupo dos piores Índices de Desenvolvimento Humano (o IDH), uma medida estabelecida pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).

Sua população é estimada em 17 mil habitantes (censo do IBGE, 2010), um percentual estimado em pelo menos 30% de índios ou descendentes diretos dos povos originais que habitam as cabeceiras dos Rios Amônia e Juruá.

São 17 aldeias com cinco povos das etnias Kuntanawa (Rio Tejo), Huni Kui (Rio Breu), Jaminawa Arara (Rio Bajé), e Ashaninka (Rios Amônia, Arara e Breu). O prefeito Piyãko faz parte deste último povo.

Filho de pai índio e de uma mãe branca, de uma família de seis irmãos, ele seguiu os passos do genitor e também casou sob as leis e os costumes dos homens brancos, também com uma mulher de cultura e características brancas, com quem tem quatro filhos. É formado e pós-graduado em Pedagogia pela Universidade Federal do Acre (Ufac).

Mas, ao que tudo indica, não é o fato de ter os pés na cultura dos homens brancos que o faz um cidadão especial. É sua consciência indígena que o faz ser um defensor intransigente do meio ambiente. Aliás, dizer que um índio não é naturalista seria um contra senso. Estamos diante de um cidadão que tem absoluta consciência de suas origens e da necessidade de proteger o meio ambiente para garantir o futuro da própria humanidade.

Piyãko é um prefeito que, no dia da posse, não pôde entrar na sede da prefeitura pela prosaica razão de que o antecessor, mesmo já na condição de ex, além de ter-se negado a lhe repassar a faixa que simboliza o poder governamental, também não lhe entregou as chaves do prédio e de nenhuma outra repartição municipal. O novo prefeito teve que registrar um Boletim de Ocorrência na polícia e, em seguida, mandar arrombar as portas dos prédios municipais, incluindo o da sede da prefeitura.

Mas não seria esta a única razão das dificuldades do novo prefeito. Embora situada na confluência de dois grandes rios amazônicos, com uma topografia cheia de morros e outros relevos e cercada pelo verde exuberante da maior e última floresta tropical do mundo, o que confere ao lugar uma beleza singular, o município parecia ter sido bombardeado. O abandono e as finanças combalidas foram apenas dois itens das enormes dificuldades que o prefeito-índio teve que enfrentar.

Nos principais trechos da entrevista a seguir, Piyãko avalia a sua gestão e aponta novos rumos para o município:

Como o senhor recebeu o município há exatos um ano e quatro meses?

Deparamo-nos com a escada de acesso ao porto quebrada. As ruas estavam destruídas. O maquinário danificado, surrupiado e se deteriorando. Além disso, as pessoas verdadeiramente necessitadas estavam sem assistência. Faltavam medicamentos e médicos em alguns postos de saúde. As escolas estavam destruídas e algumas sem merenda e água potável. Os professores e outros servidores provisórios com salários atrasados. Remédios vencidos e sendo descartados inadequadamente, bem como fornecedores e prestadores de serviço querendo receber. Herdamos uma total desestrutura administrativa que inviabilizou a gestão por quase um ano. Não sabíamos nem por onde começar, mesmo porque não houve uma transição. Eram dívidas de toda ordem: energia, empréstimos consignados de R$ 800 mil, precatórios, INSS e Receita Federal. Passamos um ano para tirar a prefeitura da inadimplência. Também existiam obras paralisadas e convênios sem a devida prestação de contas.”

Quais são os principais gargalos da sua administração?

O principal deles é  deixar a prefeitura adimplente, ou seja, pagar as dívidas. A folha do quadro efetivo é muito alta, consumindo 60% de tudo que arrecadamos. Só professores são 309 e ainda teve outro concurso para a zona rural, o que levou muito deles a acumularem dois contratos. Temos mais 60 professores com dois contratos pela prefeitura e muito estavam fora da sala de aula. Também tivemos que conscientizar alguns servidores de apoio para que eles cumprissem a carga horária completa. Outro gargalo enorme é a logística para  manter os serviços do interior. Vamos fazer um relatório e apresentar para o MEC, uma vez que temos uma geografia completamente diferenciada dos outros municípios. Temos muitos rios e quase 60% da população morando na zona rural, ou seja, em comunidades muito distantes da sede do município. Por causa de uma política irresponsável, isto é, clientelista do empreguismo, aliadas ao advento dos programas socais, muitas famílias, equivocadamente, migraram para a cidade. O resultado de tudo isso é uma cidade inchada e sem território para se expandir. Vamos aumentar o perímetro urbano, mas desta vez com uma cidade planejada, inclusive iremos cobrar alguns impostos. Esse projeto já está na Câmara e não sei por qual razão ainda não foi aprovado. A nossa relação com esse poder é outro gargalo. Os vereadores, por não quererem romper com velhas práticas, acabam atrapalhando o desenvolvimento do município. A redução dos recursos do Fundeb e do FPM também dificulta o nosso trabalho.

Quais as suas principais realizações?

Na saúde, nós trabalhamos muito. Conseguimos colocar vários programas em dias. Os PSF (Programa de Saúde Familiar) estão funcionando, principalmente com o deslocamento das unidades para a zona rural, disponibilizando todos os serviços, atendendo com carinho e atenção as nossas comunidades. Na educação estamos em fase de organização, principalmente na lotação dos servidores. Estamos conscientizando sobre a importância do trabalho deles. Construímos uma creche e estamos e temos um convênio para a construção de outra. Fizemos reformas e ampliações de cinco escolas. Com recursos próprios, construímos duas escadas no centro da cidade. Abrimos ramais e estamos dando manutenção. Adquirimos máquinas, equipamentos e barcos. Organizamos o lixão, transformando-o em um aterro sanitário controlado. Reformamos e construímos passarelas e pontes. Fizemos calçadas e outros serviços de infraestrutura nas vilas Restauração, Triunfo e Foz do Breu. Também estamos construindo duas UBS’s (Unidades Básicas de Saúde). Realizamos os festivais de praia e do feijão. Fizemos um campeonato de futebol que abrangeu todas as comunidades rurais. No tocante às emendas parlamentares, se fizermos um quadro comparativo com outras gestões, com certeza estaremos à frente. Obras importantíssimas, que mudaram a cara do município, serão executadas nos próximos anos.


Mesmo com 90% do território do município pertencendo a unidades de conservação, é possível transformar a agricultura em uma atividade rentável?

A agricultura familiar é uma necessidade vital. É a principal fonte de renda do interior. A região do Alto Juruá, além de ser geograficamente estratégica, tem vocação para a agricultura, principalmente a fruticultura para o consumo in natura e a agroindústria. Açaí, buriti, cupuaçu e a graviola são culturas nativas com um enorme potencial de mercado. Temos o extrativismo, a criação de pequenos animais, a piscicultura e o plantio em sistemas agroflorestais.  Digo isso porque conheço o zoneamento ecológico-econômico do Acre, que sustenta suas teses baseadas nas características do solo, clima e topografia. Além disso, estamos na região detentora de uma das maiores biodiversidades do planeta. Isso nos permite nos desenvolver a partir das nossas próprias potencialidades. A agricultura é portal para o desenvolvimento de regiões isoladas. Marechal Thaumaturgo tem variedades de feijões que são preciosidades. Se produzirmos em maior quantidade, a população se alimentará melhor e o excedente irá para a exportação. Óbvio que estamos falando de uma política agrícola de Estado, com uma bem definida cadeia produtiva, ou seja, a agroindustrialização, que precisa ser estimulada pelo poder público, mesmo porque é a principal forma de conter o êxodo rural, o que exige, para a sua execução, parcerias com órgãos como a Embrapa. Esta instituição está fazendo um estudo de viabilidade para identificar atividades agrícolas mais vocacionais e viáveis. Mas veja bem: nós não podemos intervir em territórios administrados pelo governo federal.

O senhor pretende transformar o município em um local sustentável? O que a sua gestão avançou na questão ambiental?

A política é para servir e fazer o bem às pessoas. A cidade precisa ser um espaço seguro e ordenado. Cidades sustentáveis seriam aquelas que adotam uma série de práticas eficientes voltadas para a melhoria na qualidade de vida da população, conciliando desenvolvimento econômico, inclusão social e preservação ambiental. Vamos fazer do nosso município um local bem planejado e eticamente administrado. Além disso, vamos buscar uma harmonização entre o nosso modelo de desenvolvimento e o meio ambiente. Mas isso demanda a participação efetiva da sociedade e uma postura condizente do poder público. Investiremos maciçamente em educação ambiental, inclusive estendendo-a ao interior. Já fizemos inúmeras campanhas para o lixo não ser descartado de qualquer forma. Nós já aprovamos o Plano de Saneamento Básico e o de Resíduos Sólidos está na iminência de também ser aprovado. O poder público costuma elaborar seus projetos com pouco ou nenhum envolvimento com a sociedade. Raramente apresenta seus projetos antes da execução para validação popular, fazendo aquilo que lhe convêm, da maneira que lhe convêm, geralmente “embalados” por alguma fonte de financiamento externo. Sobretudo na Educação e na Saúde, vamos estimular as hortas escolares, a separação de lixo, a compra de produtos agrícolas para o abastecimento das escolas, a adoção da medicina natural nos postos de saúde, transformando esses espaços não apenas para seus usuários diretos (estudantes e doentes), mais para a comunidade ao seu redor.

Diante da crise econômica, principalmente com a redução do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), como o senhor pode ousar?

Por enquanto estamos trabalhando com as emendas parlamentares. A gestão se mantém informada e vai apresentando projetos junto à banca federal acreana. Aqueles que ajudarem o município terão o nosso reconhecimento. As demais parcerias ainda dependem do cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal. A nossa folha está consumindo 60% da arrecadação e, urgentemente, precisamos chegar a 50%. Esse é o nosso principal gargalo.  A política institucional é o espaço de tratamento das adversidades. É num momento de crise que podemos inovar e ser criativos. Vamos valorizar os recursos e inverter prioridades. Vamos aproveitar o potencial econômico da região, a sabedoria do povo e as belezas naturais para transformar em atrações turísticas, gerando renda para a nossa gente. Enfim, estamos em uma região de grande potencial. O que precisamos é de uma administração inteligente e que tenha o compromisso em melhorar a qualidade de vida das pessoas que vivem aqui. Se o gestor cuidar com zelo dos recursos públicos, dá para fazer mais e melhor. O parâmetro de conduta é a lei, que é a base para uma gestão planejada, ética, eficiente, participativa e transparente.


A região tem potencial para o turismo?

Sim. A sociobiodiversidade presente na nossa região atrai a curiosidade dos visitantes. Temos vários mananciais, que são boas opções de lazer, o turismo religioso da ayahuasca e as belezas naturais. As principais dificuldades são a divulgação, o acesso e a preparação da sociedade para bem receber e profissionalizar os empreendimentos. O município tem que crescer em termos de turismo na região. O poder público, principalmente o estadual, deveria investir mais na infraestrutura para o turismo, mas vejo na organização dos pequenos empreendedores a oportunidade de incremento na geração de emprego e renda na nossa região. Mesmo sendo em longo prazo, iremos investir em educação para mudar hábitos.

E o que é mudança de hábitos?

Mudança de hábito, no meu entendimento, é adotarmos posturas melhores diante das situações. Deixarmos de agir, no imediatismo e de forma automática, para sermos mais reflexivos sobre nossas práticas. De forma concreta, significa nos preocuparmos com nossos atos, com o lixo que geramos, com a água que usamos, com o meio ambiente ao nosso redor, percebendo que nossas ações individuais têm reflexos coletivos. E isso que nos legitima a “sermos chatos” e a “nos metermos na vida do outro”, que é a nossa vida também. Se alguém joga um lixo no chão, ao invés da lixeira, temos todo o direito – eu diria o dever – de alertá-lo da consequência dos seus atos. O lixo deve ir pra lixeira, independente de quem o colocou no lugar errado. É essa relação do indivíduo com o coletivo que nos dá o direito de reivindicarmos dos governos melhorias nos serviços públicos. Todos nós temos o que mudar, o que melhorar, sempre, e a sociedade precisa estar disposta e aberta às mudanças, participando efetivamente dela. O controle social é a melhor forma de fazer uma administração consequente.

O senhor é feliz morando aqui?

Sou muito feliz! Feliz pela natureza do meu trabalho e porque conheço a Amazônia. Já percorri todo o Vale do Juruá e sei as grandes vantagens em se morar aqui: a relativa tranquilidade, o contato com a natureza, a solidariedade e hospitalidade do povo. Essas coisas não se encontram em qualquer lugar. Temos muitos problemas, geralmente os mesmos que afetam outros locais. O isolamento é uma questão relativa, nos distancia de algumas coisas, umas positivas, outras negativas. O custo de vida é alto em alguns aspectos, mas em outros (alimentação com produtos regionais e opções de lazer) é mais barato. Todo local tem as suas particularidades. Sou um membro ativo da comunidade thaumaturguense e estimulo outros para que também o sejam. Há um conceito chamado de FIB (Felicidade Interna Bruta) ou Filosofia do Bem Viver, que é o estilo de vida dos povos indígenas. Acredito não ser possível viver melhor sacrificando outros. O bem viver é o equilíbrio entre os seres humanos e destes com os elementos da vida. A convivência de todos os seres humanos com a mãe terra e todos os elementos do planeta mais amplamente. Acredito que é possível e necessária a aproximação da filosofia indígena para a construção de uma sociedade melhor. Somos capazes de convivermos com as diferenças. O poder também precisa ser compartilhado para se chegar ao bem viver.

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