A equipe de transição do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) não sabe ainda em que ministério colocar a Funai. Mas os funcionários da autarquia que cuida das políticas públicas em relação aos índios já sabem onde gostariam de ficar. Em carta enviada ao futuro ministro da Justiça, Sérgio Moro, os servidores pedem para permanecer no próprio Ministério da Justiça, ao qual está vinculada atualmente.
“A Funai precisa ser fortalecida em termos de orçamento, pessoal e instrumentos para o exercício de sua expertise técnica e atribuições únicas, mantendo-se à frente da coordenação da política indigenista de Estado e sob vínculo administrativo com o Ministério da Justiça”, diz a nota, assinada por Andrea Prado, presidente da INA – Indigenistas Associados, associação dos funcionários da Funai.
Na carta, os funcionários relatam o longo processo de esvaziamento da Funai. Governos de diferentes tendências políticas têm-lhe suprimido atribuições e imposto severas restrições orçamentárias e de recursos humanos e materiais. Lembra, por exemplo, que, desde 1988, a autarquia só promoveu três concursos públicos para contratação de servidores – boa parte deles já às portas da aposentadoria. E que o orçamento da autarquia, que em 2013 foi de R$ 190 milhões, caiu para R$ 117 milhões em 2018.
Diz também que os direitos dos indígenas, como a posse da terra que ocupam, estão inscritos na Constituição de 1988. “Por meio do texto constitucional de 1988, e sob seu impulso e influência, garantiram-se direitos fundamentais e diferenciados a essa parcela da população e a possibilidade de uma política indigenista assentada sobre relações não tutelares, mas cidadãs”.
Em contradição aberta a declarações do presidente eleito e de membros do futuro governo, os funcionários da Funai afirmam que a política de proteção aos indígenas não significa um entrave ao desenvolvimento: “Eventual radicalização do entendimento dos povos indígenas como obstáculos, com a paralização das demarcações, a abertura das terras indígenas à exploração indiscriminada do agronegócio e da mineração, seria desastrosa, inclusive para a imagem e a figura do Brasil em acordos e processos de negociação internacional”.
Leia o ofício:
Ofício n.9 027/2018/|NA
Brasília, 23 de novembro de 2018.
A Sua Excelência o Senhor
Juiz Federal Sérgio Fernando Moro
Integrante da Equipe de Transição da Presidência da República
Senhor Juiz Federal,
1. Cumprimentando-o, dirigimo-nos a Vossa Excelência na qualidade de representantes da lndigenistas Associados (INA), associação de servidores da Fundação Nacional do Índio – Funai, autarquia da União vincu|ada ao Ministério da Justiça. Certos do apego de Vossa Excelência aos valores da República e da legalidade constitucional, servimo-nos desta comunicação para fazer chegar ao seu conhecimento as considerações abaixo elencadas, que nos parecem estratégicas no atual momento da condução da política indigenista do Estado brasileiro.
2. Instituída em 1967, em substituição ao extinto Serviço de Proteção aos Índios – SPI (1910-1967), a Funai é herdeira e mantenedora de uma tradição de mais de cem anos de indigenismo de Estado. O indigenismo de Estado atua, decerto, em conjugação com as predominantes orientações políticas de cada momento histórico do País. No entanto, se algo de geral pode ser dito dessa tradição que une a visionária iniciativa de Nilo Peçanha, Rodolpho da Rocha Miranda e Candido Rondon em 1910 aos dias de hoje, há de ser a altivez de um Estado que, na relação com os povos originários destas terras, soube criar espaços, mecanismos e formas de proceder para que a generosidade, o respeito e a inclusão não sucumbissem plenamente às formas violentas do extermínio, da escravização, do esbulho territorial e da dominação cultural. Originalmente pautado por uma visão de que os indígenas deveriam ser tutelados pelo Estado, o indigenismo brasileiro tem na Constituição de 1988 marco fundamental de consolidação de um pacto de convivência mais generoso da sociedade envolvente com os povos originários. Por meio do texto constitucional de 1988, e sob seu impulso e influência, garantiram-se direitos fundamentais e diferenciados a essa parcela da população e a possibilidade de uma política indigenista assentada sobre relações não tutelares, mas cidadãs.
3. No cenário pós-1988, aspecto relevante do exercício da política indigenista consistiu na transferência de atribuições da Funai a outros órgãos. Por essa via, em áreas tão basilares quanto a saúde e a educação, a maior parte da responsabilidade e do orçamento para a execução da política indigenista deixou de ser da Funai e passou, respectivamente, ao Ministério da Saúde e ao sistema articulado pelo Ministério da Educação com secretarias estaduais e municipais. Também nas áreas de políticas sociais, ambientais, de segurança pública, ordenamento territorial, fomento produtivo, entre outras, a execução da política indigenista exige concentrados esforços de articulação interinstitucional. Entende-se, portanto que as finalidades estatutariamente definidas da Funai sejam além de (í) “proteger e promover os direitos dos povos indígenas, em nome da União”, (ii) “formular, coordenar, articular, monitorar e garantir o cumprimento da política indigenista do Estado brasileiro”. (Decreto n9 9.010/ 2017, Anexo 1, art. 29). A complexidade técnica do conjunto de ações que envolvem a política indigenista e o acúmulo ao longo do século no desenvolvimento das atividades de promoção dos direitos dos povos indígenas fazem da Funai um órgão especialista no Estado Brasileiro.
4. O desempenho das atribuições da Funai vê-se dificultado, no entanto, pelo reduzido orçamento discricionário que, de R$190 milhões em 2013, caiu para R$117 milhões em 2018. Emendas parlamentares têm amenizado um pouco a penúria orçamentária. Ainda assim, trata-se de orçamento consumido, em larga medida, com atividades-meio, pouco restando para atividades-fim. Trata-se de orçamento insuficiente em face da magnitude das responsabilidades do órgão, da complexidade das articulações interinstitucionais requeridas, da extensão e dispersão das terras indígenas – presentes nas cinco regiões do país, totalizam, somadas, mais de 13% do território nacional e 22% da Amazônia – e dos desafios administrativos envolvidos na manutenção da operacionalidade de 39 Coordenações Regionais, quase 300 Coordenações Técnicas Locais, e 11 Frentes de Proteção Etnoambiental com suas 23 Bases na Amazônia Legal. Tal equipamento atende a uma população que perfaz quase um milhão de indígenas no Brasil (IBGE, 2010).
5. A Funai, que absorveu pessoal do SPI e de outros setores da administração no período anterior a 1988, realizou apenas três concursos públicos em sua história. Em seu quadro de pessoal predominam servidores à porta da aposentadoria. Os recursos humanos mais recentemente recrutados por meio de concursos apresentam alta taxa de evasão, frente a condições laborais distantes das ideais, remunerações inferiores à de órgãos correlatos da Administração Federal e ausência de plano de carreira. Todos os setores da Funai ressentem-se de falta de pessoal. A diagnose do grave problema de recursos humanos por que passa o órgão indigenista e as medidas que seriam recomendáveis para mitigá-lo aparecem em auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União (TC 008.223/2015-7; Acórdão 2.662/2015). Parte do problema pode ser resolvido com a chamada do excedente do concurso de 2016, caminho para a vinda de mais de 100 novos servidores para o órgão.
6. A superação do modelo tutelar anterior a 1988 por meio da construção de um indigenismo de Estado pautado no reconhecimento da cidadania indígena encontra paragem em fóruns mantidos pelo governo para o exercício da interlocução de boa-fé entre seus representantes e os mais de trezentos povos indígenas que habitam o Brasil. Nesse sentido, faz-se necessário dotar a Funai das condições para retomar o funcionamento do Conselho Nacional de Política indigenista (Decreto 8.593/2015), que não se reúne desde 2016, e conferir efetividade e permanência aos seus Comitês Regionais (Decreto 9.010/2017, Anexo l, art. 59, inciso I, e art. 89).
7. No que diz respeito, ainda, à interlocução de boa-fé sempre que medidas administrativas ou legislativas possam afetar os povos indígenas, não se pode mais relevar a dívida que acumula o Estado brasileiro no sentido de colocar em prática mecanismos de Consulta Livre, Prévia e informada, tal como previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho e incorporado no ordenamento jurídico nacional (Decreto n9 5.051/ 2004). Instâncias centrais de governo têm tido muita dificuldade de incorporar o princípio da Consulta Livre Prévia e informada aos povos indígenas, como nos casos de planejamento de grandes obras e empreendimentos com impactos socioambientais sobre povos e terras indígenas. Reconhecer a necessidade da Consulta, recorrendo ao papel mediador da Funai para tanto, poderia amenizar, na viabilização de empreendimentos dessa natureza, grande parte do desgaste político e da mora advinda da interveniência do Ministério Público Federal e da cobrança de instâncias internacionais de defesa de direitos humanos.
8. Especificamente voltada para povos isolados e de recente contato, a Funai tem desenvolvido, ao longo dos últimos trinta anos, política pública fundamentada no paradigma do não contato e do respeito à autodeterminação desses indígenas. A efetividade dessa política – referência para outros países da América do Sul que reconhecem a existência de populações em isolamento voluntário em seus territórios – colabora para que o Brasil continue sendo o país com o maior conjunto conhecido de povos e grupos indígenas isolados e de recente contato no mundo. Trata-se de populações altamente vulneráveis, por fatores como baixa imunidade a doenças, baixos contingentes demográficos, pressão territorial e alheamento às formas de representação política na sociedade envolvente. Instrumento essencial para o exercício desta política específica, a manutenção de Bases de Proteção Etnoambiental na Amazônia Legal encontra-se obstaculizada pelos problemas de orçamento e pessoal da Funai. Cinco dessas Bases foram fechadas nos últimos três anos.
9. O direito coletivo dos povos indígenas ao usufruto exclusivo das terras que tradicionalmente ocupam está garantido no texto constitucional de 1988 (art. 231). Nas Disposições Transitórias da Constituição inscreveu-se o prazo de cinco anos para a conclusão das demarcações de todas as terras indígenas do país. No entanto, apesar do paulatino avanço que se logrou alcançar no processo global, persiste um passivo de centenas de casos, que dificultam a reprodução física e cultural de grupos indígenas, muitas vezes de forma dramática, favorecem a tensão e o conflito pela posse da terra em diversas regiões do país e _geram insegurança jurídica. Órgão responsável pelas primeiras etapas dos procedimentos administrativos de demarcação de terras indígenas, em estreito vínculo com o Ministério da Justiça (Decreto 1.775/1996), a Funai se vê às voltas, hoje, com duas ordens de problemas para dar conta de suas atribuições nessa matéria. Do ponto de vista normativo, o Parecer n9 001/2017 da Advocacia-Geral da União, chancelado pelo Presidente da República, ao vincular toda a Administração Pública à adoção da chamada “tese do marco temporal” nos processos demarcatórios, trouxe carga ainda maior de indefinição para o rumo dos procedimentos em curso e para a possibilidade de solução para os pendentes. contestada pelo movimento indígena organizado em nível nacional e pelo Ministério Público Federal quanto à constitucionalidade da medida, a AGU constituiu Grupo de Trabalho (GT) destinado a firmar a devida interpretação do Parecer. Ultrapassado, porém, o prazo para a conclusão das atividades do GT, tudo segue em compasso de espera. Já agora em termos operacionais, a insuficiência de recursos humanos do órgão indigenista é apenas parte da grave situação que o impede de dar encaminhamento às reivindicações fundiárias indígenas no país e a mais de cem processos administrativos demarcatórios que, iniciados, seguem, em grande parte, meramente paralisados. Desde 2012, a Funai não conta com nenhum mecanismo que lhe permita contratar profissionais de fora de seu quadro de servidores – antropólogos e outros especialistas requeridos para a confecção dos estudos que embasam o reconhecimento oficial das terras indígenas. Soluções nesses dois aspectos – orientações normativas precisas, nos marcos constitucionais vigentes, e condições operacionais – devem ser urgentemente oferecidas, para que a Funai possa fazer a sua parte no cumprimento do mandato constitucional de reconhecimento dos direitos territoriais indígenas.
10. A consistência de políticas públicas indigenistas depende de que, à demarcação das terras, venha se somar a promoção das garantias para boas condições de vida nas áreas demarcadas. Muito se avançou, nesse sentido, com o marco legal da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental – PNGATI (Decreto n9 7.747/ 2012). As ações previstas na PNGATI fornecem base importante para diversas políticas e iniciativas nacionais relacionadas à proteção do meio ambiente, fazendo-se um destaque aqui à mudança do clima e à conservação da diversidade biológica. Além do papel fundamental desempenhado por esses territórios na manutenção da riqueza étnica e cultural dos povos originários, cumpre ressaltar o papel central na conservação da biodiversidade e no enfrentamento aos efeitos da mudança do clima – especialmente por meio da conservação, no longo prazo, dos estoques de carbono armazenados em suas áreas. Conforme reconhecido no plano das políticas de Estado ao longo das últimas décadas, conferir aos povos indígenas condições para viver bem, segundo seus usos, costumes e tradições, em terras da União sobre as quais disponham da posse permanente (art. 231/CR), corresponde a contribuir para o direito de todos a um meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225/CR) e para o papel do Brasil na continuidade da existência humana em todo o planeta.
11. Para concluir, submetemos à consideração de Vossa Excelência ponto transversal aos acima destacados, e de caráter mais geral. Em tempos recentes, parece estar crescendo a ideia de que os povos indígenas constituam obstáculo ao desenvolvimento econômico do Brasil. Alguma manifestações surgem como propostas e ameaças de reversão de direitos que lhes são constitucionalmente garantidos e de enfraquecimento do órgão que se ocupa da proteção e promoção desses mesmos direitos. Em face dessa conjuntura, a manutenção da ordem constitucional no que se refere aos direitos indígenas parece constituir matéria precípua do Ministério da Justiça.
12. Urge à sociedade e ao Estado Brasileiro fazer circular e defender o entendimento de que as terras e os modos de vida desses grupos minoritários da sociedade brasileira adquirem, sobretudo no atual contexto global, caráter efetivamente estratégico para a promoção de políticas de desenvolvimento. Essas políticas só têm a ganhar quando variáveis e índices econométricos se fazem acompanhar da dimensão socioambiental, que, acolhendo a diversidade humana e colocando em perspectiva a finitude dos recursos naturais, mira em melhorias sociais capazes de contribuir para a manutenção de ecossistemas e ciclos hidrológicos e climáticos. Eventual radicalização do entendimento dos povos indígenas como obstáculos, com a paralisação das demarcações, a abertura das terras indígenas à exploração indiscriminada do agronegócio e da mineração, seria desastrosa, inclusive para a imagem e a figura do Brasil em acordos e processos de negociação internacional.
13. Contamos, portanto, com o apego à ordem constitucional e a elevada função de Vossa Excelência no novo governo para fazer frente a essa ordem de propostas. A Funai precisa ser fortalecida em termos de orçamento, pessoal e instrumentos para o exercício de sua expertise técnica e atribuições únicas, mantendo-se à frente da coordenação da política indigenista de Estado e sob vínculo administrativo com o Ministério da Justiça.
14. Colocando-nos ao inteiro dispor para eventuais esclarecimentos que se façam necessários, subscrevemo-nos.
Respeitosamente,
ISOLDE LANDO
Diretora de Políticas para Servidores
ANDREA BITENCOURT PRADO
Presidente da INA