A língua identifica as práticas tradicionais e a cultura de um povo. Essa é a premissa da iniciativa da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) que ao longo de 2019 celebrará o Ano Internacional das Línguas Indígenas, que tem como objetivo chamar a atenção para a importância dessas línguas para a riqueza cultural global. Há no Brasil, atualmente, cerca de 170 línguas indígenas “vivas”. E só no Amazonas, onde se concentra o maior número de etnias, há aproximadamente 53, que podem variar para mais ou para menos de acordo com a identificação de dialetos.
Segundo estimativa da Unesco, das cerca de sete mil línguas do mundo, apenas 3% da população mundial fala 96% delas. Grande parte dessas línguas, faladas por povos indígenas, continuarão a desaparecer em um ritmo alarmante, levando consigo suas histórias, tradições e memórias. Diante desse cenário, algumas iniciativas, como a produção de material didático nessas línguas, seu ensino nas escolas, a maior incorporação delas pelos serviços prestados pelo estado, como saúde e educação, e também a formação de professores indígenas no Amazonas, têm contribuído de alguma forma para que elas sejam fortalecidas e preservadas.
De acordo com a professora Jonise Nunes, o Estado precisa cuidar mais dessas línguas, formar mais pesquisadores e abrir mais editais de pesquisa a respeito dessa questão. “Há cerca de 15 linguistas que se dedicam às línguas indígenas atualmente. É pouco. No entanto, a criação de um curso de formação de professores indígenas permitiu que se pensasse o ensino nas aldeias de uma perspectiva bilíngue, o que é positivo para a preservação dessas línguas”, diz ela, que é coordenadora do curso de licenciatura Formação de Professores Indígenas na Universidade Federal do Amazonas (Ufam), que já existe há 10 anos, conta com 11 professores em seu quadro e já formou 150 professores de diversas etnias da região de São Gabriel da Cachoeira, Lábrea, Manicoré, Benjamin Constant e uma turma de cidades do Médio Solimões.
“Quando o aluno do nosso curso fala a língua materna, procuramos fortalecer o ensino bilíngue, mas quando fala somente português, o incentivamos, e alguns conseguem aprender os conhecimentos de seu povo para ensinar o básico da língua nativa de sua etnia para que ela continue circulando naquele espaço e assim fortalecer a identidade daquele povo”, reforça Jonise Nunes.
Só na região do município de São Gabriel da Cachoeira (distante 858 quilômetros de Manaus) há 16 línguas. Entre elas, além do português, o tukano, o baniwa e nheengatu são consideradas línguas oficiais da cidade. “Nessa região, o tariana e o werekena correm sérios riscos de extinção porque tem um número de falantes muito pequeno”, explica a professora Ana Ferreira, doutora em linguística pela Universidade de São Paulo (USP), cuja pesquisa de doutorado foi sobre a língua indígena arara, falada no sudoeste do Pará.
Por outro lado, de acordo com a pesquisadora, o tukano, o baniwa e o nheengatu, na região do Alto Rio Negro, e o tikuna, no Alto Solimões, são as línguas com o maior número de falantes no Amazonas e são consideradas línguas em expansão. “Principalmente por certas particularidades, como casamentos intertribais, e também porque os Tikuna são a maior população indígena do Amazonas”, explica.
Grafia e dicionário dos Baniwa
Em São Gabriel da Cachoeira, entre os Baniwa, segundo Bonifácio José, da Liderança Indígena Baniwa do Alto Rio Negro, as crianças da aldeia aprendem primeiro a língua baniwa, depois na escola têm aulas de português como segunda língua.
“Nosso povo trabalha para dar continuidade ao uso da nossa língua. Trabalhamos com as igrejas, universidades e pesquisadores para termos a escrita. Já temos a nova grafia em um dicionário Baniwa, além de ela ser uma das quatro línguas oficiais do município. Também temos materiais didáticos produzidos pelos professores durante cursos de magistério e superior. Hoje os professores trabalham com esse material nas escolas”, explica Bonifácio.
“Acreditamos que temos enriquecido a nossa cultura e a língua com a incorporação daquelas palavras que não existem em nosso contexto”, afirma, ressaltando que o contato com os meios de comunicação e as músicas são portas de entrada para a língua portuguesa nas aldeias, mas que isso não é visto como uma ameaça. “Esse contato com o português enriquece a nossa língua, pois acrescenta mais palavras do que as que já temos”, diz.
Preconceito ‘impõe’ o português
Um dos grandes obstáculos ao fortalecimento das línguas indígenas, diz Jonise Nunes, é o preconceito linguístico sofrido pelos índios que, muitas vezes, têm a sua língua materna ignorada pelo poder público ou considerada “menos importante”, principalmente quando eles migram aos ambientes urbanos e entram em contato direto com os falantes do português.
“O índio já é excluído socialmente, então, quando ele chega numa escola onde falam de outra forma, ele vai fazer um esforço imenso para se apropriar do português. Muitos pais nas aldeias rejeitam a língua indígena aos filhos para protegê-los dos preconceitos que eles mesmos sofreram. Para essa língua sobreviver, o professor que vai lecionar nessa aldeia tem que ser muito convincente da importância daquela língua para aquele povo. Infelizmente, a tendência é esse silenciamento”, disse, ressaltando que, apesar das iniciativas de valorização das línguas, a preservação e o fortalecimento delas deve partir da própria comunidade.
Ana Ferreira também lembra que um dos mitos mais insistentes do Brasil é que somos um povo que fala somente uma língua, o que invisibiliza ainda mais as línguas indígenas. “Eles [os índios] deveriam ser valorizados porque são bilíngues [os das regiões que fazem fronteira com os países vizinhos às vezes falam três idiomas, a sua, o português e o espanhol]. O Brasil historicamente ignora essas línguas e os povos indígenas sentem essa opressão de aprender o português padrão e ignorar a própria língua”, aponta.
Luta de índios urbanos é dobrada
Se para os povos originários que vivem nas aldeias já há alguns desafios para preservar a própria língua nativa, aos 45 mil indígenas que vivem na capital amazonense, segundo levantamento do Distrito Sanitário Especial Indígena Manaus (Dsei-Manaus), onde a maioria da população fala português, o desafio parece ser ainda maior, porém há certa resistência de alguns.
A tradutora Carla Fernandes, da etnia Dessana, por exemplo, que vive na capital há sete anos e trabalha no Centro de Medicina Indígena Bahserikowi, no Centro Histórico, na Zona Sul da cidade, conta que quase não tem contato com os seus parentes que ainda vivem na aldeia. “Falo a minha língua aqui na cidade, inclusive sou intérprete do pajé no Centro de Medicina Indígena. Aqui no centro somos de três etnias diferentes”, conta.
Quem também faz questão de manter a língua de sua etnia viva é a dona de casa Maria de Jesus Santos, da etnia Kokama, que é natural do município de São Paulo de Olivença (distante 1.235 quilômetros de Manaus) e mora na capital há cinco anos. Além de falar a língua portuguesa fluentemente, ela faz questão de se comunicar com o filho de oito anos em sua língua materna quando está em casa.
“Moro na capital há muitos anos, mas sempre procuro lembrar o meu filho das nossas raízes. Acho importante, mesmo morando longe, não deixar a nossa cultura morrer”, diz.
Yanomami tem 11,7 mil falantes
Levantamento do Instituto Socioambiental (ISA) mostra que há cerca de 11.700 falantes do yanomami, que vivem no AM e em RR, número considerado alto, mas, mesmo assim, não garante a sobrevivência da língua, por não formar “estoque populacional” para enfrentar eventos de grande impacto social, como epidemias e conflitos.