Mais que colares e pulseiras, o artesanato trouxe reconhecimento para a aldeia urbana Tico Lipú, localizada em Aquidauana (MS), e que enfrentava dificuldades para acessar serviços públicos.
A iniciativa “Mulheres Artesãs”, implementada pela funcionária pública Janir Gonçalves Leite, foi uma das vencedoras do prêmio Viva Voluntário 2018, na categoria Líder Voluntário, e receberá um financiamento de 50 mil reais da Fundação Banco do Brasil para próximos projetos.
Tudo começou porque a comunidade indígena faz parte de uma área de ocupação e, por isso, não possuía reconhecimento da Fundação Nacional do Índio (FUNAI).
Após anos de abandono e passando por situações de carência extrema, os moradores da aldeia se mobilizaram para ter seus direitos reconhecidos: a iniciativa partiu do cacique Francisco Gomes Lipú, que buscou a líder voluntária Janir Gonçalves Leite para auxiliá-lo na criação de um projeto que pudesse reverter o quadro de pobreza.
Foi assim que Janir, servidora pública da prefeitura municipal, iniciou seu trabalho na Aldeia Urbana Tico Lipú, em fevereiro de 2017.
Ela já havia desenvolvido um trabalho semelhante em 2008 na aldeia Ipegue, localizada no distrito de Toné, também no Mato Grosso do Sul.
Após um encontro com as mulheres da comunidade, ela elaborou um projeto de artesanato, com o objetivo de promover o resgate da cultura indígena, a participação ativa da comunidade e a geração de renda para essas famílias.
Biojoias
As atividades iniciais do projeto foram oficinas de orientação e confecção de biojoias a partir de sementes naturais e o plantio de uma horta comunitária.
As mulheres foram capacitadas em todas as fases da confecção, desde a seleção e tratamento das sementes até a criação e montagem de diferentes modelos de adereços.
As peças finalizadas são comercializadas em feiras quinzenais organizadas na cidade. Segundo Janir, as dificuldades iniciais foram muitas, principalmente quanto à falta de recursos para realizar o projeto.
“Reuni o pouco que tinha de material para começar, e usávamos a furadeira que eu trazia de casa”, explica.
Mesmo com tantas dificuldades, o projeto avançou com apoio e participação da comunidade. Desde o início, as mulheres demonstraram interesse e disponibilidade para participar das oficinas, o que para Janir é o ponto mais importante para o desenvolvimento de qualquer atividade com uma comunidade.
“Para fazer qualquer coisa, em qualquer comunidade, é preciso ter pessoas dispostas e que acreditam na iniciativa. Se as mulheres não tivessem topado, o programa não teria acontecido”, esclarece a idealizadora.
Cidadania Tico Lipú
O projeto organizado por Janir já rendeu frutos para os moradores. O maior benefício foi o reconhecimento pela FUNAI, que permite que os residentes sejam identificados como pertencentes à aldeia e tenham seus direitos sociais e acesso a serviços públicos garantidos.
Antes dessa legitimação, as mães precisavam se deslocar até outras aldeias e dependiam da boa vontade do cacique local para conseguir registrar seus filhos como pertencentes a outra comunidade.
Com a certificação da FUNAI, o cacique local tem autoridade para registrar as crianças e demais moradores como provenientes da Aldeia Tico Lipú.
Além disso, as mulheres indígenas podem acessar outros direitos, como licença-maternidade e aposentadoria pelo INSS, disponibilizados devido à referência ao trabalho artesanal da confecção de biojoias e ao trabalho na terra, com o plantio da horta comunitária.
Reconhecimento
O projeto foi o vencedor do prêmio Acolher, organizado pela marca Natura Cosméticos. O recurso disponibilizado está sendo utilizado para melhorar as condições do espaço de trabalho das mulheres – entre as melhorias, estão a construção de banheiro, de uma sala fechada, de um depósito para guardar a matéria-prima, os equipamentos e a produção, além de mobiliário para as oficinas, como mesas e cadeiras.
Para manter o engajamento da comunidade, todas as mudanças estão sendo feitas pelos moradores em regime de mutirão.
Após a obra, o projeto vai aumentar o escopo e oferecer oficinas de capacitação para abarcar outras técnicas de artesanato indígena.
As primeiras técnicas a serem incorporadas ao projeto serão de construção de cestaria de palha e de abanico, um tipo de leque feito de buriti, seguidas de técnicas de grafismo para pintura e produção de roupas.
Mães e filhos
Além das oficinas de artesanato, Janir desenvolveu atividades de contação de histórias na língua terena para as crianças da aldeia.
O projeto surgiu devido à percepção de que as crianças da comunidade ficavam sem atividades e sem cuidado enquanto as mães participavam do artesanato
. “Tive essa ideia porque vi que havia muitas crianças na comunidade, muitas mesmo, que ficavam soltas, correndo, enquanto as mães estavam na atividade do artesanato”, explica.
À essa questão, somou-se que a língua terena, original dos indígenas da aldeia, estava se perdendo, já que as escolas da região não possuem um sistema diferenciado para essa população. Apenas cinco anciãos ainda a conhecem e a utilizam para se comunicar.
Na atividade, Janir conta uma história em português para os idosos, e eles recontam a mesma história na língua terena para as crianças e jovens.
Dessa maneira a geração mais nova aprende a língua, se reconecta com a identidade indígena local e resgata a cultura da aldeia.
Janir explica também que um dos maiores ganhos do projeto foi a consciência que as mulheres da comunidade passaram a ter sobre seus próprios problemas e a possibilidade de resolvê-los.
Ela acredita na força das mulheres para se organizar e buscar a garantia de seus direitos: “antes tinha muita reclamação sobre os problemas, mas ninguém fazia nada.
Agora elas se mobilizaram e perceberam, criaram consciência de que precisam fazer algo para conseguir ajuda, elas precisam se ajudar e estão se mexendo”, descreve Janir.
A mobilização já está extrapolando o projeto de artesanato. A comunidade iniciou a construção de um posto de saúde em regime de mutirão e com recursos próprios, e está implantando uma rede de energia elétrica para atender a aldeia.
O projeto do artesanato é, portanto, um ponto de partida para permitir a autonomia dos habitantes locais. A líder voluntária acredita que os moradores vão continuar o desenvolvimento do projeto após sua saída, e vê em seu trabalho uma possibilidade de retornar à sociedade tudo o que ela pôde aprender em oportunidades e experiências.
Janir acredita que a melhoria nas condições de vida da aldeia tem consequências positivas na qualidade de vida da cidade como um todo.
“Acredito que quanto melhor a vida da comunidade, melhor a minha vida também, e é isso que as pessoas têm que saber pra vivermos bem”, conclui.