Nos últimos anos, a Fundação Nacional do Índio (Funai) vem atuando com cerca de um terço de sua força de trabalho, uma situação-limite agravada por decisões tomadas no atual governo, em especial pelo Decreto 9.711/2019, que contingenciou em 90% o orçamento da Funai previsto na Lei Orçamentária Anual.
A falta de funcionários atinge toda a instituição, mas é nas estruturas mais descentralizadas, as Coordenações Técnicas Locais (CTLs) e as Frentes de Proteção Etnoambiental (FPEs) – as mais próximas das comunidades indígenas – que a situação é mais grave. Em regiões de intensa disputa fundiária nos processos por demarcação e altos índices de violência, é comum que o quadro de pessoal conte com apenas um servidor. Na região de Caarapó, ao sul do Mato Grosso do Sul, palco de conflitos intensos entre fazendeiros e indígenas Guarani-Kaiowá, uma única servidora da Funai atende 10 mil indígenas, trabalhando dentro do carro.
De acordo com um levantamento feito com dados de 2017 pelo ex-servidor do órgão Helton Soares dos Santos, em trabalho apresentado na Escola Nacional de Administração Pública (Enap), 101 das 240 CTLs da Funai contavam com menos de dois servidores ativos. Destas, 22 não contavam com nenhum servidor ativo no período analisado.
A baixíssima frequência de concursos para a instituição já foi alvo de crítica até do Tribunal de Contas da União (TCU) em uma série de análises sobre a Funai, a última delas em 2015. O último concurso para a contratação de servidores foi feito no ano seguinte, em 2016, mas as nomeações só começaram em dezembro de 2017. Nos primeiros meses do governo Jair Bolsonaro, as nomeações de pessoal vêm ocorrendo principalmente em capitais como Cuiabá, Brasília e Rio de Janeiro, enquanto as estruturas periféricas estão em situação de emergência – o que é alvo de uma ação judicial movida por um grupo de servidores da Funai que tomou posse após o último concurso para contratação de pessoal.
Os servidores acionaram a Justiça em fevereiro, depois de o Ministério da Economia ter publicado uma portaria em 24 de janeiro autorizando a contratação de um excedente de 50% do número de aprovados no último concurso. O edital previa 202 servidores, mas o ministério autorizou a contratação de outros 101, o que em tese seria positivo não fosse um detalhe: das 47 vagas ofertadas na última leva, 25 foram na sede da Funai, em Brasília, e as demais, em capitais estaduais ou em locais próximos a elas. De acordo com a advogada dos servidores, Blenda Nascimento, “isso fere a ordem de classificação do concurso e vai contra a ideia de que a instituição está precisando de servidores e infraestrutura nas suas pontas”. Os servidores conseguiram uma liminar na 7ª Vara da Justiça Federal em Brasília suspendendo as nomeações, mas ainda assim uma servidora foi nomeada em Brasília nesse período. O caso ainda tramita na Justiça. Em juízo, a Funai se defendeu dizendo que “tem grande déficit de pessoal, eis que sua força de trabalho equivale a apenas um terço da ideal” e que “todas as unidades da Funai tem carência de mão de obra e necessitam de servidores”. A fundação diz que não sabia que haveria o excedente autorizado pelo Ministério da Economia e entende que a primeira nomeação de servidores já havia atendido às necessidades prioritárias da instituição.
Funai perdeu quase 2 mil servidores nas últimas duas décadas
Atualmente no Corpo de Bombeiros do Distrito Federal, Helton Soares dos Santos viu de perto os efeitos da falta de braços para desempenhar seu papel como chefe do Serviço de Avaliação de Desempenho da Coordenação de Desenvolvimento de Pessoal da entidade, onde ficou cinco anos. “Eu trabalhava na sede da Funai, atendendo todo o Brasil. Fazia um serviço que era para, no mínimo, três ou quatro pessoas. Era eu e mais uma pessoa atendendo mais de 2 mil servidores dentro da área de pessoal. Tínhamos que acumular muitas tarefas. Isso serviu até de motivação para realizar o estudo”, relata. Em seu trabalho de conclusão da especialização em gestão pública feita na Escola Nacional de Administração Pública (Enap), Helton se debruçou sobre o histórico da gestão de pessoas da Funai.
De acordo com os dados da própria entidade, entre 1991 e 2017 a fundação admitiu 1.172 servidores. No mesmo período, no entanto, 1.330 servidores se aposentaram e outros 1.818 foram excluídos dos quadros da entidade – foram quase 2 mil servidores perdidos pela Funai nesses 26 anos. As baixas se deram ao longo de anos em que o órgão foi ganhando mais e mais atribuições, como, por exemplo, os projetos de etnodesenvolvimento, voltados para a geração de renda e produção sustentável nas aldeias. E os cortes permanecem: entre janeiro de 2017 e novembro de 2018, a Funai perdeu cerca de 10% de sua força de trabalho – cerca de 261 funcionários. Em novembro de 2018, eram 2.293 servidores para atender uma população de cerca de 897 mil indígenas – média de 2,56 servidores para cada mil indígenas aproximadamente, a metade dos números do serviço público brasileiro em geral, que é de pouco mais de cinco servidores para cada mil habitantes. No período analisado por Helton, a Funai operava com apenas 30% de sua capacidade: de 5.584 cargos aprovados, contava apenas com 2.078 ocupados, o que vem sendo alvo de protesto dos indigenistas.
A situação do déficit de servidores do órgão indigenista preocupa ainda mais pela idade avançada da força de trabalho – 60% do total de servidores que estavam na Funai à época da análise de Helton estarão aptos a se aposentar em 2020. Além deles, 567 servidores já cumpriam os requisitos para a aposentadoria, mas preferiram permanecer trabalhando no período analisado pelo estudo. Pela projeção, outros 500 servidores poderão se aposentar até 2023.
Análise do TCU apontou “enfraquecimento crônico da força de trabalho” na Funai
Reunida no Acórdão 2.626/2015, uma avaliação sobre a Funai feita em 2015 pelo TCU já apontava o precário quadro de pessoal como um dos principais problemas da instituição. Entre os nove fatores apontados como prejudiciais ao funcionamento adequado da Funai, está o “enfraquecimento crônico da força de trabalho”, causado pela baixa remuneração dos servidores, baixa regularidade na admissão de pessoal, capacitação insuficiente dos servidores, quantidade insuficiente de servidores, potencial redução do quadro em função das aposentadorias, dificuldade de fixação de servidores em localidades remotas e alta taxa de evasão dos servidores, especialmente entre os recém-ingressados.
“A escassez de capital humano compromete o funcionamento de uma organização sob inúmeros aspectos. Sem pessoal qualificado em quantidade suficiente, não é possível desempenhar e conduzir bem qualquer processo interno existente, desde o mais básico ao mais complexo. As deficiências da Funai relacionadas à comunicação institucional, planejamento, licenciamento, projetos sociais e de etnodesenvolvimento, controles de processo e patrimônio têm entre suas principais causas, diretas ou indiretas, a situação do quadro de pessoal da Fundação”, conclui o TCU.