“Estamos escrevendo nossa própria história”, diz indígena doutoranda do Museu Nacional

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Política de cotas possibilitou entrada de milhares de indígenas no ensino superior, muitos já estão na pós-graduação. Porém conquistas estão ameaçadas por novas diretrizes do MEC sobre bolsas de permanência. Até 2017, Francineia Fontes nunca tinha ouvido falar do Museu Nacional do Rio de Janeiro, uma das instituições de pesquisa mais conceituadas do mundo. “Não fazia a mínima ideia. Só conhecia São Gabriel da Cachoeira (AM) e Manaus, porque tive que ir uma vez”, conta. Hoje, a indígena da etnia baniwa é mestre em antropologia social pelo Museu, e acaba de começar o doutorado.

Francy, como prefere ser chamada, simboliza um fenômeno em curso no Brasil: a participação cada vez maior de representantes dos povos originários nas cadeiras das graduações e pós-graduações. Marcado por uma série de dificuldades de adaptação e permanência nas universidades, contudo, o processo está ameaçado por novas diretrizes do Ministério da Educação (MEC).

 

O primeiro desembarque no Rio de Janeiro foi um choque para Francy. “Ver só concreto e poucas árvores me assustou. Para piorar, não tinha nem uma cara indígena de São Gabriel”, recorda, divertindo-se. “Se eu tivesse dinheiro, teria comprado a passagem para voltar”. Ela atribui a permanência na cidade ao pai, que a incentivou desde o princípio. Além do suporte emocional, a família teve um papel decisivo para sua permanência no Rio.

Aos 30 anos, ela precisou deixar na aldeia os dois filhos, de 11 e 13 anos. O desafio de ser mãe estudante a acompanha desde a graduação em Sociologia na Universidade Federal de Manaus (Ufam), mas a distância dói. Com a bolsa de mestrado de 1.500 reais por mês, numa das cidades mais caras do país, ela se desdobra para visitar a família ao menos uma vez por ano.

“Além da saudade, preciso estar na roça, pescar, tomar banho de rio. Não vivo bem na cidade”, confessa, admitindo que faria o mestrado à distância se pudesse. Após voar para Manaus, leva dois dias em viagem de canoa para chegar à comunidade de Assunção do Içana, localizada no Baixo Rio Içana, na Terra Indígena Alto Rio Negro. Fran se orgulha de dizer que estudou do ensino fundamental ao médio ali, numa escola indígena, com professores da comunidade. As cicatrizes no corpo, acentuadas nas mãos, revelam que a dedicação ao estudo dividia espaço com o trabalho.

“Acordávamos às quatro da manhã para ralar quatro aturás [cestos grandes] de mandioca. Nesse horário, o sono é gostoso, mas tínhamos que fazer isso para ajudar a nossa mãe, pois íamos para a escola pela manhã”, explica. “Eu e minha irmã ralávamos sem parar e disputávamos para ver quem ralava mais rápido. Quando machucava as mãos, por descuido, saia muito sangue, mas passávamos no cabelo e melhorava. Assim fizemos durante estes anos todos.”

Francy fala com muito carinho das origens. Não à toa, escolheu as tradições de seu povo como objeto de sua dissertação de mestrado, defendida em fevereiro de 2019: Hiipana, eeno hiepolekoa: construindo um pensamento antropológico a partir das mitologias baniwa e de suas transformações. Como ela faz questão de frisar, é um olhar “de dentro para fora”, contrariando o caminho habitual da antropologia. “Tem muita coisa que o pesquisador não indígena não vê, porque não vivenciou a cultura. Nós nos criamos no território, entendemos os costumes, as crenças. Estamos escrevendo nossa própria história”, orgulha-se.

A crítica ao modo de atuação de pesquisadores que não pertencem às comunidades é bem assimilada pela linguista Bruna Franchetto, professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) do Museu Nacional. “Muitos têm passado pelas aldeias e não dão o retorno que os povos indígenas, hoje, esperam e exigem”, constata. “Os resultados de pesquisa dos pós-graduandos indígenas, e mesmo os trabalhos de conclusão de curso das licenciaturas sempre contêm dados novos, aos quais o pesquisador não indígena tem pouco ou nenhum acesso. É comum eles trazerem críticas procedentes e interessantes aos trabalhos feitos por brancos.”

O PPGAS do Museu foi o primeiro programa de pós-graduação a oferecer cotas para indígenas e negros no país, em 2013. Desde então, Franchetto orientou representantes de diversos povos. O primeiro foi um professor do povo kuikuru, do Alto Xingu, que a linguista viu nascer em sua aldeia – ela desenvolve pesquisas com esse grupo étnico há mais de 40 anos.

Ela conta como o trabalho dos orientadores extrapola a convivência acadêmica, no caso dos estudantes indígenas: “A orientação começa com acolhimento concreto: procurar um lugar para morar, abrir conta no banco.” Ela assume o papel de fiadora de alguns estudantes, condição fundamental para alugar imóveis na cidade. “Não há estrutura de acolhimento, e as bolsas não permitem a ninguém viver no Rio. Mas é impressionante a capacidade que eles têm de se virar em um contexto urbano tão difícil como o do Rio. Às vezes, moram cinco em apartamentos de três quartos.”

 

A habitação é apenas um dos problemas enfrentados pelos indígenas que ingressam na universidade. No caso dos estudantes de graduação, as dificuldades são ainda maiores, com bolsas de 900 reais. O Programa Bolsa Permanência (PBP) foi criado em 2013 para reduzir a evasão dos alunos de baixa renda, e deu especial atenção a indígenas e quilombolas, que recebem bem mais do que os 400 reais pagos aos demais estudantes. A diferença se justifica pela origem de suas famílias, que, no geral, não mantêm atividades remuneradas em suas comunidades.

Até 2018, o PBP atendeu 7.370 indígenas, 2.666 quilombolas e 9.563 estudantes de baixa renda – os quais deixaram de receber o auxílio em 2016. Com a expansão das ações afirmativas (cotas) nas universidades brasileiras, a demanda pelas bolsas aumentou progressivamente. Na região amazônica, especificamente, o número de indígenas bolsistas cresceu 190% por ano, em média. Para a maioria desses estudantes, é o único recurso de que dispõem para moradia, transporte, alimentação, compra de livros acadêmicos e outros gastos. Em 2018, o valor destinado à assistência estudantil correspondia a 137 milhões de reais.

O programa convive com atrasos nos pagamentos que, muitas vezes, são suficientes para quebrar o sonho da graduação. “Temos colegas que são despejados dos apartamentos que alugam depois de três meses de atraso”, conta Jhenifer Tupinikim, presidente da Associação Acadêmica Indígena da Universidade de Brasília (UnB). Neste ano, porém, o problema ganhou outra dimensão: novas diretrizes do Ministério da Educação (MEC) condicionaram a concessão da bolsa a critérios de desempenho e à conclusão do curso em até dois semestres além do tempo regulamentar.

Na visão do movimento indígena, as mudanças impostas pelo MEC não levam em consideração particularidades desses estudantes, que mudam radicalmente de vida ao entrar na universidade. “Nossa tradição é toda baseada na oralidade. O volume de leitura é muito grande na graduação, e não faz parte da nossa cultura ficar horas à frente do computador escrevendo. A adaptação não é fácil”, afirma Pierlangela Nascimento, mestre pelo Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia da Ufam.

Com a entrada dos estudantes indígenas, as universidades tiveram que se adaptar de várias formas. Na Universidade de Brasília, as mudanças aconteceram na ordem de infraestrutura, com a construção de malocas a pedido dos estudantes, e no processo seletivo, pelo vestibular exclusivo para indígenas. O PPGAS do Museu Nacional também flexibilizou os critérios de seleção, que tradicionalmente incluem até prova de língua estrangeira.

“Acolher alunos indígenas não significa apenas incluir no nosso universo acadêmico. Tem que ser, ao mesmo tempo, uma abertura radical desse universo para novas experiências, novas visões e maneiras de construir texto”, afirma a professora do Museu Bruna Franchetto. “Para mim, é uma experiência fantástica, de novas escrituras. É extremamente enriquecedor para a academia, caso ela resolva se abrir e repensar toda uma série de normas estabelecidas.”

No Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena, vinculado à Universidade Federal de Roraima (UFRR), optou-se por abolir a exigência dos Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC), levando-se em consideração a tradição oral dos indígenas. O Insikiran foi pioneiro ao criar um núcleo para discutir as políticas educacionais indigenistas dentro da universidade, a partir da demanda de uma formação superior para professores de escolas indígenas. Pierlangela integrou a primeira turma, em 2004, e tem bem vivas as memórias do período.

“Nossa presença na universidade não foi bem recebida no início. Certa vez, sem saber que estávamos no banheiro, uma funcionária de limpeza comentou que tudo ficava fedendo a índio”, relembra. Hoje, ela é diretora de ensino num instituto federal de educação do município de Amajari, em Roraima. Num campus multiétnico, com 60% dos alunos indígenas, ela coordena mais de 40 professores do Brasil inteiro com doutorado em diversas áreas. Pertencente ao povo wapichana, ela começou sua trajetória dando aulas na escola indígena na comunidade onde nasceu.

O escopo de atuação do Insikiran se expandiu nos últimos anos, e hoje também são oferecidos bacharelados em Gestão Territorial e Saúde Coletiva Indígena. Seu diretor, Marcos Braga, lembra que as bolsas de permanência não estão garantidas pelo MEC para os alunos que entraram neste semestre: “A situação está complicada e preocupante. A iniciativa precisa se tornar uma política pública na dotação orçamentária do MEC. Sendo projeto, qualquer um pode tirar. Antes das bolsas, nossa taxa de evasão era muito alta”, critica.

Ele lembra, porém, que os desafios dos estudantes indígenas que conseguem o acesso ao Ensino Superior são também pedagógicos. Para muitos, o português é a segunda língua, o que leva a uma alta retenção. “Mas vale destacar que a taxa de conclusão dos que entram chega a 60%, o que considero um sucesso, nas condições que temos”, avalia, ressalvando: “Há um grupo de sete estudantes yanomami que tiveram contato recente com o português. Ainda não encontramos o caminho de inclusão para eles.”

Buscando apresentar soluções para esta e outras dificuldades do acesso de indígenas do estado à universidade, o senador Telmário Mota (Pros-RR) idealizou o projeto da Universidade Federal Indígena de Roraima, estado que tem 46% do território composto por terras indígenas. Pelo projeto de Telmário, a universidade seria construída na comunidade de Placa, que fica num ponto equidistante entre três terras indígenas – Normandia, Uiramutã e Pacaraima.

“Temos cerca de 100 mil indígenas no estado, sendo que mais de metade vivendo nas áreas urbanas. Por não constituírem mão de obra especializada, vão para serviços subalternos e são facilmente recrutáveis para o crime. Essas pessoas precisam ter qualidade de vida nas suas comunidades”, argumenta o senador.

Para isso, a universidade projetada teria cursos ligados a áreas como agricultura e turismo, a fim de rentabilizar projetos dessas áreas de forma sustentável nas comunidades. Haveria também cursos de biologia, geologia, entre outros, nos quais seria incentivado um intercâmbio entre o conhecimento dos cânones e o dos povos tradicionais. Em todos os casos, haveria acessibilidade para os estudantes que não tenham o português como primeira língua.

O projeto já foi apresentado à ministra da Mulher, Saúde e Direitos Humanos, Damares Alves, e ao vice-presidente Hamilton Mourão. Segundo Telmário, a receptividade foi positiva em ambos os casos. O senador estima em cerca de 300 milhões o custo da nova universidade.

A DW Brasil procurou o MEC para obter explicações sobre as mudanças em relação ao Programa de Bolsa Permanência, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.

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