Joênia Wapichana: “Vão ter que se acostumar com uma deputada indígena”

Parlamentar é a primeira advogada indígena do Brasil e primeira a ser mulher eleita deputada federal. Nascida em Boa Vista, Roraima, ela deseja que outros membros de tribos cheguem ao Congresso. “Antes eram recebidos com gás lacrimogêneo e agora tem uma pessoa aqui com quem eles podem contar.”

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Joênia Wapichana (Rede), deputada federal por Roraima — Foto: Marília Marques/G1

os 45 anos, Joênia Batista de Carvalho, mais conhecida como Joênia Wapichana, é a primeira mulher indígena a se tornar deputada federal no Brasil. Para o Abril Indígena [campanha da FUNAI em prol da causa indígena], Joênia criou a Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas. Composto por 219 deputados e 29 senadores, o objetivo do grupo  é dar mais visibilidade a propostas em prol da população indígena, pauta que guia a vida da parlamentar, que saiu ainda criança da comunidade Truaru da Cabeceira para viver com a mãe, Anúzia, e os os sete irmãos em Boa Vista (RO).

Anúzia sabia que a educação era a porta para que seus filhos tivessem oportunidades. Com Joênia, deu certo. Ela estudou Direito, tornou-se a primeira mulher indígena advogada no Brasil e, aos 24 anos, já atuava defendendo comunidades. Ganhou destaque com a defesa da demarcação de terra na comunidade Raposa Serra do Sol.

Quatro anos antes, ela já tinha sido a primeira mulher indígena a ir até a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em Washington, nos Estados Unidos, para denunciar violações do Estado brasileiro. E, em 2011, se tornou novamente a primeira indígena brasileira a completar um mestrado em uma universidade dos Estados Unidos.

Nesta conversa com  Marie Claire, a deputada relembra sua campanha e o desafio de ir contra a premissa de que “índio não vota em índio”, fala sobre seus primeiros dias no Congresso Nacional e que “há muito trabalho a ser feito”. Diz ainda que foi a primeira, mas não quer ser a única e nem a última parlamentar indígena: “Que eu sirva de exemplo para os próximos estados.”

MARIE CLAIRE Conta sobre sua mãe? Foi escolha dela que vocês saíssem da tribo para poder estudar na capital?
JOÊNIA WAPICHANA
 Minha mãe era uma mulher além de seu tempo. E não só por ser indígena, mas também por ser mãe de oito filhos e que teve que deixar sua comunidade, sustentar sozinha as crianças. Ela via que a educação poderia ser também uma oportunidade da gente entender porque éramos tão discriminados em uma cidade em que a maioria é indígena. Ela era uma visionária. Quando crescemos, ela se alfabetizou, voltou para a comunidade e trabalhou como merendeira na escola indígena, trabalhou no posto de saúde e depois se aposentou como servidora.

MC Você tentou Medicina, Contabilidade e terminou em Direito, por que esta última escolha?
JW 
Medicina eu só fiz o vestibular. Tinha 17 anos e queria fazer alguma faculdade. Os planos dos meus parentes eram que eu voltasse para a comunidade para dar aula assim que eu terminasse o ensino médio. Só que eu não queria, achava que podia fazer mais. Neste mesmo ano fiz vestibular para Contabilidade e passei, só que minha irmã, que teve bebê, faleceu logo depois do parto. Fiz 18 anos e tive que praticamente assumir uma criança que não era minha. No outro ano, fiz vestibular para Direito e foi o que mais me identifiquei. Quis cursar pela minha irmã: me sentia injustiçada pelo o que ela passou no hospital, porque ela estava em um aparelho de respiração e, quando fui até lá, já tinham desligado a máquina. Nunca tive certeza de que não desligaram só porque ela era indígena e tinham que dar o aparelho para outra pessoa.

MC Como mulher indígena, o que te falta do Estado brasileiro? Onde ele mais falha com as mulheres indígenas?
JW 
O Estado falha em não ter políticas específicas, atendimento adequado para as mulheres indígenas, ainda tem muitos problemas relacionados a isto, à prevenção, aos partos, ainda existe essa ideia de que pelo fato de ser indígena pode ser de qualquer jeito. Os direitos sociais têm que ser vistos como investimento. Quando eu falo de saúde e sustentabilidade, está muito relacionado às mulheres e jovens que sofrem com a discriminação.

MC Você é a segunda política indígena a ocupar cargos eletivos no Brasil. O que afasta os indígenas da política?
JW
 Tem tanta coisa. Somos muito novos em educação política, era entendido que se a gente se aproximasse da política, iríamos deixar de ser índios, que se tivesse uma identidade ou votasse, você iria deixar de ser índio. Um absurdo que não é do passado, o próprio presidente quer deixar a gente de fora da sociedade. Você vai ser indígena pela sua origem, costumes e crenças, pela forma que te reconhecem, posso passar anos vivendo na Alemanha e não vou deixar de ser indígena. Temos que participar e ter parte desses direitos civis, a emenda parlamentar não deve ser vista como assistencialismo, são direitos da população e nós indígenas também somos cidadãos brasileiros.

MC Qual considera ser a sua maior conquista política?
JW
 A Raposa Terra do Sol. Ter colaborado por uma terra que abriga mais de 20 mil pessoas e ter dado a minha vida para defender. Não é o fato de ter ganho, é o fato de ter sido uma das pessoas a ter lutado, ter usado minha prerrogativa como advogada, exercer minha profissão para defender direitos coletivos e o prêmio é ouvir músicas com meu nome e em homenagem a mim na minha língua.

MC Lideranças políticas e ativistas que denunciaram crimes ambientais já foram assassinadas ou tiveram suas vidas ameaçadas. Você já sofreu ameaças?
JW 
Algumas vezes na época da Raposa Terra do Sol, lutava pelo reconhecimento da terra, contra os crimes ambientais que haviam ali e apresentei uma denúncia, isso me deu muita visibilidade e recebi e-mail dizendo que não era patriota e que se acontecesse alguma coisa comigo era justificável.

MC O que pensa sobre a descriminalização do aborto?
JW
 Ainda não parei para pensar, estou refletindo o assunto que não é da minha área e tenho que analisar. Mas sem fazer qualquer julgamento, acho que existem situações que temos que ponderar, estupros, riscos de vida, isso eu sou a favor, é o direito da mulher.

MC Quais mulheres políticas você admira?
JW
 Marina SilvaErika KokayTábata Amaral… é até injusto citar nomes porque de repente eu posso esquecer de algum, mas são tantas mulheres… Admiro só o fato de termos mulheres aqui, pois várias superaram desafios e discriminação.

MC Você se identifica especialmente com alguma delas?
JW
 Com a Marina, porque ela nasceu no Acre, veio de família de seringueiros, acompanhou a história de Chico Mendes, tem todo um trabalho voltado para o direito do coletivo, a experiência dela em defender direitos socioambientais, pelo pensamento que ela tem em relação à política brasileira, pela sustentabilidade, por saber que a Amazônia não é só de exploração.

MC Existe alguém que você despreza?
JW
 Não gosto de pensar nisso, acho que esse sentimento a gente não deve cultivar. Por mais que você não goste da pessoa, tipo o Bolsonaro, a gente reza por ele. Já fui a igreja e fiz uma oração para ele, porque foi isso que me ensinaram, você reza para esta pessoa ter paz de espírito. Eu rezava para os fazendeiros, para as pessoas que falam mal da gente. Acredito nisso.

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