Em Guarulhos desde os anos 1990, Paulo Matos da Silva, 45, é cacique do povo Wassu Cocal. Mais populosa cidade do estado depois da capital, com 1,3 milhão de habitantes, o município da Grande São Paulo também é o segundo em população indígena segundo o último Censo do IBGE.
São mais de 1.400 habitantes e ao menos 12 etnias presentes na cidade cujo nome remonta a um povo que viveu em São Paulo até a chegada dos portugueses. Porém, hoje os indígenas que buscam manter a história na região metropolitana são, sobretudo, vindos de outros estados como Silva.
“O objetivo da gente migrar de um estado para outro é pelo melhor para os nossos filhos”, afirma. “Temos muitos indígenas que hoje são médicos, advogados, professores e precisaram fazer essas migrações para vários estados do nosso país.”
Paulo está na segunda passagem pelo estado. A primeira foi em 1994, quando ficou até 2002 e retornou para a aldeia que fica entre as cidades de Joaquim Gomes e Novo Lino, a 70 km de Maceió (AL). Em 2013, decidiu voltar para a Grande São Paulo. “Não importa onde a gente estiver. Somos nativos, somos indígenas, em qualquer lugar que a gente esteja, em qualquer estado”.
A trajetória do cacique é semelhante a de outros indígenas que adotaram a capital e os municípios vizinhos. Os últimos dados oficiais, apontam para a presença de 21 mil índios na Grande São Paulo, com aldeias como a Tekoa Itakupe, no Jaraguá, na zona oeste, e o povo Guarani Mbya, em Parelheiros, na zona sul.
Há ainda aqueles que vivem em bairros da capital como na Favela Real Parque, zona sul, onde os Pankararus tentam manter a tradição. Estes grupos ajudam a preservação da cultura indígena que atualmente não conta com os povos originários de São Paulo, que desapareceram no processo de colonização.
PASSADO
A rodovia Índio Tibiriçá, que liga o ABC paulista a Suzano, no Alto Tietê na Grande São Paulo, é uma das poucas referências ao indígena que ajudou na formação da capital. Enquanto ele mantinha a aldeia Ihambipuaçu e conexão direta com o português João Ramalho, fundador da primeira vila da região – Santo André da Borda do Campo, dois irmãos do indígena lideravam grandes aldeias no que hoje conhecemos como periferias.
Onde hoje está a capela de São Miguel Arcanjo, na zona leste, Piquerobi tinha a aldeia de Ururaí, enquanto Caiubi era quem atuava em Jerubatuba, um lugar muito grande, onde está a atual Santo Amaro, na zona sul.
A população indígena que vivia no século 16 teve destino pouco feliz. Parte morreu com as doenças trazidas pelos portugueses, parte foi morta em confrontos contra os colonizadores ou em guerras tribais, e alguns foram escravizados.
É dessa época que surgem os chamados aldeamentos, que deram origem ao nome de vários bairros e cidades de São Paulo. Esses espaços criados pelos jesuítas foram utilizados com a missão de catequizar os povos e retirá-los da vida na mata. Eles eram confinados em locais onde deveriam viver e aprender o trabalho.
“Os jesuítas procuraram oferecer, através da reestruturação das sociedades indígenas, uma solução articulada para as questões da dominação e do trabalho indígena. […] O projeto tornou-se um dos sustentáculos da política indigenista do Brasil colonial”, apontou o historiador John Manuel Monteiro, no livro “Negros da Terra – Índios e Bandeirantes nas origens de São Paulo”. O historiador morreu em 2013 e tratou da escravidão indígena no planalto paulista.
Diversos povos habitavam a região e se perderam com o tempo como os Karijó (ou Guarani), Tupinikim, Tupinambá, Kaiapó, Guayanás e Guarulhos (ou maromomi).
Os guayanás eram nômades que viviam da caça, pesca e coleta de frutos silvestres. O nome inspirou o nome do distrito de Guaianases, na zona leste, por onde teriam passado.
No caso de Guarulhos, foi justamente dessa denominação que veio o nome do município, um dos primeiros lugares a virar um aldeamento, na época chamado de Nossa Senhora da Conceição, em 8 de dezembro de 1560. Também havia os aldeamentos régios: São Miguel Paulista e Pinheiros (1580), Barueri (1609), Escada (1698), atual Guararema, e Cotia.
Por fim, fazendas criadas a partir de doações recebidas pela Companhia de Jesus, também serviram como locais para utilizar o trabalho dos índios. É o caso de Carapicuíba (1615), Itapecerica (1690), Embu (1624), Itaquaquecetuba (1622), que eram submetidas à jurisdição do Colégio de São Paulo de Piratininga.
Esse processo foi fatal para os povos. De 14 mil indígenas em 1640 que viviam em Pinheiros, São Miguel e Guarulhos, havia menos de 2 mil em 1660 e pouco mais de dezenas em 1680, segundo estudos sobre o período. “Os demais índios, ou foram transferidos para as fazendas particulares dos paulistas, incorporados às suas propriedades e se tornado oficialmente seus escravos, ou pereceram em razão de doenças e da violência no emprego intensivo dessa mão de obra”, diz o historiador Gustavo Velloso em sua dissertação de mestrado.
OS ÍNDIOS HOJE
Este pedaço da história que se foi é recontado hoje com as danças e a produção de objetos artesanais que mantêm os atuais grupos na Grande São Paulo.
Em Osasco, por exemplo, estão os Pankararés, povo com origem da região de Paulo Afonso (BA). Quem vive na cidade é Alaide Feitoza, 67, cacique, nascida em Glória (BA), filha de Ângelo Xavier Feitoza, líder indígena assassinado em 1979 no estado de origem. “Eu morava em São Paulo e vim para Osasco. Somos 38 famílias na cidade”, conta Alaide.
Os indígenas vivem em bairros, em especial na zona norte da cidade, como Baronesa, Helena Maria, Portal D’Oeste e Aliança. Eles recebem apoio da prefeitura, por meio do programa de economia solidária. Já foram realizadas na cidade 13 semanas dos povos indígenas e, no final de abril, Osasco recebeu povos de diversas regiões da Grande São Paulo e de outros estados.
Alaide tem quatro filhos e diz que é um desafio transferir a tradição para a próxima geração, tendo em vista o contexto urbano. “Como eles foram criados aqui, vão nos eventos, participam, mas não é do jeito que eu gostaria”.
Segundo o Censo Demográfico realizado pelo IBGE em 2010 há 817.963 indígenas no país, dos quais 502.783 vivem na zona rural e 315.180 habitam as zonas urbanas brasileiras
O mesmo desafio tem sido o de Paulo, da Wassu Cocal, que tem seis filhos. Além da criação, há outras dificuldades em Guarulhos. Ele afirma que manter essa cultura no contexto urbano é um desafio, principalmente pela resistência com relação às áreas ambientais. “Reivindicamos sempre com os municípios áreas para a gente viver nossa cultura originária dentro de área de mata verde, os municípios não atendem às nossas necessidades”, diz.
Para o cacique, além de não preservar a cultura indígena, as cidades perdem oportunidades. “Às vezes até usam área de mata verde para fazer lixões, onde seria o lugar certo para trabalhar nossa cultura e ajudar o próprio município com o ecoturismo e isso eles não aceitam”.
No município guarulhense, existe a demanda pela terra do Cabuçu, região próxima da Serra da Cantareira, onde já foi implantado um aterro sanitário.
Sobre as áreas verdes, a prefeitura de Guarulhos diz não ter autonomia sobre a liberação para os povos indígenas e que cabe ao governo federal essa determinação. Quanto ao Cabuçu, a gestão afirmou se tratar de uma área pertencente ao Rodoanel. “Têm sido realizados diálogos no sentido da desocupação dessas terras, até o momento sem sucesso”.
A prefeitura afirma que tem apoiado as ações de valorização e promoção realizadas pelos povos indígenas presentes na cidade, como a realização do 10° Encontro dos Povos Indígenas de Guarulhos, ocorrido em 2017, e os (1° e 2°) encontros dos Povos Kaimbé no Estado De São Paulo, ocorridos em 2018 e 2019.
Também cita que criou um grupo de trabalho que trata do tema e destinou uma agente de saúde para o atendimento da população. Por fim, afirma que há ações da secretaria de Educação para cumprir a legislação e ensinar a história indígena nas escolas. “É de extrema importância a presença dos povos indígenas na cidade e positivo o resgate histórico e a participação deste segmento da população na vida do município”.
Enquanto isso, os povos ainda esperam uma atuação mais efetiva. Paulo é cético sobre o futuro. “Passa de geração em geração, prefeitos e mais prefeitos, que não dão condições de atender essa demanda que é de muitos anos da cultura indígena. O governo deveria dar mais visibilidade aos indígenas que estão no contexto urbano”.