A Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal (6CCR/MPF) divulgou nota pública em que manifesta “perplexidade” com o teor da Medida Provisória 886, publicada nesta quarta-feira (19) pelo governo federal. A medida altera o texto da Lei 13.844/2019 aprovado pelo Congresso Nacional, e devolve a tarefa de demarcação de terras indígenas em todo o país ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa).
A nova MP reitera disposição existente na Medida Provisória 870, rejeitada pelo Congresso Nacional em maio deste ano. Com isso, viola a Constituição e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), além de desrespeitar o processo legislativo, aponta na nota pública o coordenador da 6ª Câmara, subprocurador-geral da República Antônio Carlos Bigonha. “De acordo com a Constituição Federal, é proibida a reedição, numa ‘mesma sessão legislativa’, de medida provisória que tenha sido rejeitada ou tenha perdido a eficácia. Embora a Medida Provisória 870 tenha sido enviada ao Congresso na sessão legislativa anterior, ela foi rejeitada na atual sessão legislativa, enquadrando-se, portanto, na vedação constitucional”, destaca o texto.
Em março, a 6ª Câmara emitiu nota técnica em que defendeu a inconstitucionalidade da Medida Provisória 870, agora reeditada como MP 886. De acordo com o órgão, ao transferir a demarcação de terras para o Mapa, a MP coloca em conflito os interesses dos indígenas com a política agrícola da União, e com as atribuições do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, com prejuízo para os povos originários. “Às já identificadas inconstitucionalidades somam-se agora ao desrespeito ao processo legislativo, que afronta a separação de Poderes e, em última instância, a ordem democrática”, conclui Bigonha.
Leia na Íntegra à nota pública
“Nota pública
A 6 Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais) manifesta sua perplexidade com o teor de Medida Provisória n. 886, de 18 de junho de 2019, publicada na data de hoje, que que “altera a Lei nº 13.844, de 18 junho de 2019, a Lei nº 8.171, de 17 de janeiro de 1991, a Lei nº 12.897, de 18 de dezembro de 2013, a Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998, e a Lei nº 13.334, de 13 de setembro de 2016, para dispor sobre a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios.”
A Medida Provisória altera o texto da Lei n. 13.844, de 18 de junho de 2019, para estabelecer que “constituem áreas de competência do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento”: (…)”reforma agrária, regularização fundiária de áreas rurais, Amazônia Legal, terras indígenas e terras quilombolas” . Reiterou, dessa forma, disposição existente na Medida Provisória 870, de 1o de janeiro de 2019, rejeitada pelo Congresso Nacional em maio de 2019.
De acordo com a Constituição Federal (artigo 62, parágrafo 10), é proibida a reedição, numa “mesma sessão legislativa”, de medida provisória que tenha sido rejeitada ou tenha perdido a eficácia. Embora a Medida Provisória 870 tenha sido enviada ao Congresso na Sessão Legislativa anterior, ela foi rejeitadana atual sessão legislativa, enquadrando-se, portanto, na vedação constitucional.
O Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre o tema reiteradas vezes.
Destacamos três precedentes sobre o tema, por sua relevância.
No julgamento da ADI 2.010, o Relator, Ministro Celso de Mello firmou o entendimento do STF sobre o tema, ao afirmar que “O presidente da República, sob pena de ofensa ao princípio da separação de poderes e de transgressão à integridade da ordem democrática, não pode valer-se de medida provisória para disciplinar matéria que já tenha sido objeto de projeto de lei anteriormente rejeitado na mesma sessão legislativa . Também pelas mesmas razões, o chefe do Poder Executivo da União não pode reeditar medida provisória que veicule matéria constante de outra medida provisória anteriormente rejeitada pelo Congresso Nacional.
Já na ADI 3.964, julgada em 11.4.2008, o Ministro Ayres Britto observou que “Tese contrária importaria violação do Princípio da Separação de Poderes, na medida em que o Presidente da República passaria, com tais expedientes revocatório-reedicionais de medidas provisórias, a organizar e operacionalizar a pauta de trabalhos legislativos. Pauta que se inscreve no âmbito do funcionamento da Câmara dos Deputados e do Senado Federal e, por isso mesmo, matéria de competência privativa dessas duas Casas Legislativas”.
No mesmo sentido caminhou a Suprema Corte, sob a relatoria da Ministra rosa Weber, ao apreciar a Medida Provisória n. 768, que dispôs sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios no governo anterior (Presidente Michel Temer). No julgamento da ADI 5.709, ocorrido em 27 de março de 2019, o Supremo Tribunal Federal entendeu que trazer novamente matéria já rejeitada constitui “ofensa ao princípio de separação de poderes e transgressão à integridade da ordem democrática”. Ressaltou, ainda, que “ao trazer novamente a matéria como forma de burla à Constituição, houve a contaminação da medida provisória impugnada em sua totalidade, porque a vedação resulta de vício de origem e, assim, abrange todo o ato normativo.”
Ressalte-se que a 6 a Câmara demonstrou, por meio da Nota Técnica n. 01/2019/6a CCR, a inconstitucionalidade dos dispositivos constantes da Medida Provisória n. 870, de 1o de janeiro de 2019, e reeditados na Medida Provisória n. 886/2019, e defendeu a manutenção da Funai e da demarcação de terras indígenas no Ministério da Justiça. Às já identificadas inconstitucionalidades soma-se agora o desrespeito ao processo legislativo, que afronta a separação de poderes e, em última instância, a ordem democrática.
A 6a Câmara prosseguirá na defesa dos direitos constitucionais dos povos indígenas e do Estado de Direito por todos os meios institucionais que estiverem ao seu alcance.
ANTONIO CARLOS ALPINO BIGONHA
Subprocurador-Geral da República Coordenador da 6a CCR/MPF”