“Quando decidi cursar faculdade, sofri muitas críticas. Mas não desisti nem me calei. Pelo contrário, resolvi contar sobre as violências que vivemos e encontrei muitas mulheres que me ajudaram a falar sobre nossa realidade.
Às vezes, tinha de esperar o marido delas sair de casa para que conseguissem falar sobre o que passaram. No fim, acabei transformando toda essa experiência em conhecimento”.
O depoimento da indígena Ilda Pereira dos Santos ocorreu durante a realização de um curso inédito sobre a utilização das novas mídias sociais no enfrentamento à violência doméstica, oferecido pela ONU Mulheres e o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul (TJMS), no começo de junho, às lideranças indígenas de Dourados.
Durante os três dias de encontro, que contou com o apoio do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), lideranças indígenas, profissionais da saúde, da assistência social e da Justiça expuseram o difícil acesso de mulheres e crianças (principalmente) aos direitos fundamentais estabelecidos em leis e tratados internacionais, mas frequentemente violados.
A pesquisa da pedagoga guarani expôs a banalização da violência de gênero na Reserva Francisco Horta Barbosa.
Somente no mês de Junho, duas mulheres foram assassinadas na aldeia, vítimas de feminicídio. Foram entrevistadas 17 mulheres, de 19 a 51 anos de idade.
Nove disseram ter sofrido violência física, como surras, tapas ou queimaduras, e duas revelaram ter sofrido violência sexual.
Todas as parentas (como as indígenas chamam umas às outras) que responderam o questionário revelaram já terem sido vítimas de violência ou presenciado algum tipo de ocorrência.
Ouvir as vozes das mulheres indígenas é importante passo para ajustar a aplicação da Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/2006) nas aldeias. Na cidade de mais de 200 mil habitantes, 16 mil descendem dos povos bororó, terena, kaiowá e guarani.
Para Jaqueline Gonçalves, uma das lideranças femininas de defesa do povo indígena e representante do Kunangue Aty Guasu (Grande assembleia das mulheres kaiowá e guarani), há muita dificuldade para se falar sobre o assunto nas aldeias.
“Não se quer discutir a violência sexual, o estupro, o assédio, o corpo da mulher. Quase nunca conseguimos falar sobre isso. É nesse sentido que precisamos de um espaço de diálogo”, diz.
Ouvi-las é exatamente o que quer a Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul (TJMS).
“Para produzir projetos específicos, voltados a esse grupo, uma vez que as indígenas têm vulnerabilidades e características diferentes das mulheres brancas, moradoras de cidades grandes”, diz a coordenadora do órgão, Jacqueline Machado, juíza da 3ª Vara de Violência Doméstica e Familiar de Campo Grande/MS.
Entre os desafios apontados pelas mulheres indígenas estão dificuldades para fazerem os registros de denúncias.
As aldeias são muito distantes das delegacias; não possuem acesso à internet; e muitas não conseguem se fazer entender em português.
“Sem contar que, dentro da aldeia, quem fiscaliza o cumprimento da medida protetiva? Será que essa mulher não pode ficar ainda mais vulnerável a outras violências dentro da aldeia exatamente porque pediu proteção? É por isso que precisamos escutar a voz dessas mulheres.
A solução para ao menos minimizar o problema da violência nas aldeias vai nascer desse entendimento”, afirmou a magistrada.
Criminalidade e vulnerabilidade
Segundo o Ministério Público Federal (MPF), não somente a reserva de Dourados, mas outras comunidades indígenas do estado vivenciam uma escalada sem precedentes nos índices de criminalidade, enquanto o policiamento não acompanha esse cenário.
Somente em junho, segundo dados da Polícia Civil de MS, foram registrados na área seis assassinatos.
“Há vários crimes que ocorrem diariamente nas aldeias. A gente chama a polícia, eles se fazem de cegos. Tem venda de droga aqui ao lado da reserva e todo mundo sabe onde acontece.
É escancarado. Se tem uma briga, uma situação perigosa, eles dizem que não podem fazer nada. Aqui só entra a polícia para levar os corpos embora.
Aí eles entram. Quando já não há mais jeito.
A vida indígena não vale muito, nós nos sentimos invisíveis”, desabafa outra liderança, sobre o (não) atendimento policial na reserva.
Outros líderes presentes ao encontro concordaram que a drogadição e o alcoolismo têm contribuído para o aumento nos casos de violência e ressaltaram que a mulher indígena acaba sendo diretamente impactada, pois sofre com a vulnerabilidade de ser mulher, somada à dificuldade econômica e social permanente das comunidades onde vivem.
Vários parceiros da sociedade civil e do Sistema de Justiça vêm buscando ouvir a voz das mulheres indígenas, estimulando a mobilização e a participação de suas lideranças, dentro e fora de suas comunidades.
É o caso do Projeto Voz das Indígenas, da ONU Mulheres, que liderou o curso, voltado à comunidade indígena de Dourados.
O CNJ apoia as parcerias dos tribunais com os organismos não governamentais, assim como entidades públicas, no sentido de fazer valer a proteção da vida, e o cumprimento das leis brasileiras e dos tratados internacionais, ratificados pelo país em relação aos povos, de preservação de sua gente e suas culturas.