Projeto com clipes e discos preserva os cantos dos povos indígenas fulni-ô

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(foto: Raissa Azeredo/Divulgação)

Tâmara Jacinto era estudante de comunicação quando conheceu Santxiê Tapuya Fulni-ô, em 2008. Liderança indígena da etnia fulni-ô, Santxiê lutava para transformar o Santuário Sagrado dos Pajés, visado pela especulação imobiliária que resultou no setor Noroeste, em terra indígena protegida pela União. De lá para cá, houve perdas e algumas conquistas, Santxiê morreu, as terras foram demarcadas e o santuário, preservado. Na esteira dessa vontade de preservação, Tâmara embarcou em projeto de registro da língua e da música fulni-ô com a produção de um álbum e de três clipes. “O projeto todo é em homenagem às lutas do Santxiê, em homenagem à resistência pela demarcação do santuário. Desde que o conheci, minha trajetória mudou. Ele compartilhou comigo um olhar de mundo. E minha relação com eles vem se intensificando”, explica a produtora.

Tanto o álbum quanto os clipes são dedicados à cafurna, um dos três estilos musicais praticados pelos fulni-ôs. Com letras na língua yaathe entoadas em melodias com enfoque nas tradições religiosas, a cafurna é um instrumento fundamental para a preservação das expressões culturais da etnia. “Ela vem funcionando como ferramenta de manutenção da língua, principalmente para as crianças. Para além do processo de aprendizagem natural das crianças, a cafurna contribui no processo educativo”, explica Tâmara. Há ainda outras duas expressões musicais dos fulni-ô: o toré, que não tem letra e é cantado durante no ritual Ouricuri, secreto e sagrado, e o samba de coco, ritmo mais festivo, destinado às celebrações.

O Ouricuri é um dos maiores mistérios em relação aos fulni-ô e, para linguistas e antropólogos, um dos motivos de preservação da língua yaathe. Durante três meses, a cada ano, a comunidade se isola em uma aldeia reservada para o ritual. Não se sabe o que acontece por lá, mas existem especulações. Renovação, reforço dos laços e fortalecimento espiritual são algumas das explicações para o retiro e o isolamento contribui para a preservação da cultura.

Os fulni-ô estão entre os poucos povos indígenas do Brasil que conseguiram manter viva e ativa a língua mãe. Todos, das crianças aos adultos, falam o yaathe, cuja origem, segundo Tâmara, é milenar e não mudou desde a colonização. “No processo de genocídio dos povos indígenas, muitos perderam suas línguas, mas os fulni-ô conseguiram mantê-la como primeira língua”, garante. Segundo dados do IBGE, há hoje no Brasil 5.278 fulni-ô. A etnia pertence ao tronco macro-jê e a língua é considerada entre linguistas a única que se manteve viva entre os indígenas do Nordeste, de onde vêm os fulni-ô.

Segundo a linguista Fábia Fulni-ô, o yaathe é usado pela comunidade não apenas como instrumento de comunicação, mas como ferramenta de preservação das tradições. Por isso projetos como o de Tâmara são fundamentais. “A língua é o pilar da identidade deles”, avisa a produtora.

Os clipes e o disco foram gravados na Aldeia Multiétnica, na Chapada dos Veadeiros e as imagens foram captadas em três locações diferentes. Para gravar o disco, a produção montou um estúdio móvel em uma das ocas. A escolha pela mobilidade veio do produtor musical André Magalhães, responsável pelas gravações e acostumado a realizar registros musicais de culturas tradicionais. “Nossa opção, minha e do André, pelo estúdio móvel se deu principalmente pela dinâmica de canto dos fulni-ô. Assim como a maioria dos cantos tradicionais, a dança, o movimento do corpo, está intimamente ligada a música. Não conheço um povo indígena que cante sem dançar. No estúdio montado na Aldeia Multiétnica, dentro da oca, havia microfones espalhados no teto e nas laterais do círculo da dança para captar os sons na sua essência”, conta Tâmara. Enquanto dançam, os indígenas imitam sons da natureza, especialmente o das aves.

O disco foi produzido de forma independente, mas os clipes contaram com R$ 40 mil do edital de 2018 de Gravação, Registro e Distribuição em Música do Fundo de Apoio à Cultura (FAC). No total, 17 fulni-ô participam do projeto. O cuidado em captar o som diretamente no local nos quais as danças foram realizadas e a decisão de não interferir nas cenas fazem parte da maneira como André Magalhães e o Alan Schvarsberg, diretor de fotografia dos clipes, trabalharam.

Os fulni-ô ficaram conhecidos em Brasília por volta de 2011, quando teve início a articulação para instalar o setor Noroeste. No meio do caminho dos empresários e políticos que viabilizaram o empreendimento imobiliário havia uma aldeia indígena. “A ocupação da área do santuário acontece há muito tempo”, conta Tâmara. Santxiê chegou a Brasília na época da construção da cidade, junto com o irmão. O local, segundo laudo antropológico, tem resquícios de rituais de povos autóctones datados de muito antes da chegada do fulni-ô. Em 2011, começou o processo de aterramento e o tentativa de retirada dos indígenas. Santxiê era categórico: não tiraria o santuário dali. Daí nasceu a campanha Santuário não se move. O líder morreu em 2014 e somente no anos passado a comunidade do local assinou um acordo com a Terracap para demarcar 32 hectares de terra para o santuário.

 

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