Pauta racial avançou de maneira simbólica nas eleições de 2020, mas o crescimento ‘recorde’ de candidaturas de pretos, pardos e indígenas foi pouco acentuado e muito concentrado geograficamente
A proporção de candidaturas pretas e pardas nas eleições de 2020 é a maior da história. Tal fato foi alardeado por diversos veículos de imprensa simultaneamente à deliberação do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) pela adoção de critérios mais igualitários na distribuição de recursos de campanha para candidatos e candidatas negras. De fato, estamos diante de dois avanços importantes, mas bem menos ousados do que as notícias dão a entender.
A rigor, o incremento da proporção dessas candidaturas não foi tão acentuado assim. Em 2016, 48,7% dos candidatos que concorreram às Câmaras Municipais eram PPI (pretos, pardos e indígenas). Em 2020, esses grupos correspondem a 50,9% das candidaturas. O mesmo avanço tímido foi detectado nas eleições para o Executivo, que registrou 32,7% de candidaturas de PPIs à prefeitura em 2016 e 35,1% em 2020. Portanto, estamos lidando com crescimentos de menos de 3 pontos percentuais. É um avanço, porém, marginal.
Além de tímido, o avanço foi também desigual, tanto em termos regionais como partidários. Como mostra o gráfico abaixo, a maior parte dos estados apresentou uma proporção de candidaturas pretas, pardas e indígenas à vereança muito próxima daquela de 2016. O avanço está concentrado nas regiões Sudeste, a mais populosa e com maior soma de candidatos e candidatas, e Sul — ambas com um aumento em torno de 3 pontos percentuais.
O crescimento também foi desigual quando observamos os partidos políticos, como mostra o gráfico a seguir. A sigla que mais incluiu autodeclarados pretos, pardos ou indígenas foi a Rede Sustentabilidade, com um aumento de 11 pontos percentuais. Alguns partidos nanicos tiveram recuos importantes, mas pouco relevantes para o cômputo geral. Esse é o caso do PCB, do PCO, do PRTB e do PSTU. É digno de nota que o partido que mais cresceu desde 2018, o PSL, tenha sido também um dos que mais recuou em candidaturas não brancas, com uma queda de 10 pontos percentuais de postulantes pretos, pardos e indígenas.
Ademais, em cerca de 38% dos municípios brasileiros, a disputa para as prefeituras se dará apenas entre candidatos brancos. Nesses casos, eleitores e eleitoras sequer poderão votar em uma candidatura não branca. Isso implica que podemos garantir, mesmo antes das eleições do dia 15 de novembro, que quase metade das cidades brasileiras continuará sendo administrada por brancos.
São inegáveis os avanços relacionados à pauta racial nas eleições de 2020, sobretudo no nível simbólico: o tema migrou para o centro do debate público em um ano em que as eleições ocorrerão, pela primeira vez na história, no mês da Consciência Negra. Mas os avanços materiais são bem menos ousados e não se aplicam às listas de candidatos e candidatas dos partidos. Estas podem até somar uma proporção recorde de candidaturas de pretos, pardos e indígenas no agregado, muito próxima, aliás, daquela existente no eleitorado como um todo. Todavia, a distribuição desses contingentes entre as legendas fracas e fortes, bem como sua relativa concentração regional, reduzem o potencial disruptivo em relação à branquitude da política brasileira. Daí a importância de cotas mínimas nas nominatas para candidaturas pretas, pardas e indígenas, única medida capaz de garantir que tais grupos se façam presentes de modo equânime em todos os partidos e localidades.
Mas isso ainda não será suficiente sem que se mexa na distribuição de financiamento de campanha e tempo de TV. Por isso mesmo, a decisão recente do TSE é vital. A regra deve atenuar a abissal desigualdade racial de financiamento, principal gargalo às chances eleitorais de grupos subalternos. Ainda assim, tal desigualdade é tamanha que seu efeito deve ser moderado. Apenas para se ter uma ideia, menos de 1% dos candidatos no Brasil concentraram, até meados de outubro, cerca de 80% dos recursos de campanha. Em média, mais da metade das candidaturas nas eleições municipais e nacionais sequer registra valores na prestação de contas, sendo pouco impactada pela decisão.
Tudo isso indica que a luta pela inclusão de pretos, pardos e indígenas na política avançou, mas está apenas começando. Medidas legais para reduzir a desigualdade racial e de gênero na competição eleitoral são urgentes, assim como uma maior dedicação das lideranças partidárias em incorporar essa pauta, e seus defensores, em sua agenda.
Luiz Augusto Campos é professor de sociologia e ciência política do Iesp-Uerj (Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e coordenador do Gemaa (Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa). Junto com Carlos Machado, publicou pela Editora Zouk o livro “Raça e Eleições no Brasil” (2020). É editor-chefe da revista acadêmica Dados.
Gráficos por Lucas Gomes.