Publicado originalmente no site Amazônia Real
POR FABIO PONTES
O povo Ashaninka chega ao fim de 2020 sem registro de casos de Covid-19 nas aldeias da Terra Indígena Kampa do Rio Amônia, no Acre. É um feito e tanto diante do fato de que o vírus alcançou comunidades quase isoladas, cujo tempo de viagem pode levar dias. Com o rio em boas condições de navegabilidade, chega-se ao território Ashaninka em uma viagem de até oito horas a partir do município de Marechal Thaumaturgo, no Vale do Juruá.
Os Ashaninka seguem um criterioso isolamento social. Pessoas das aldeias não podem sair e quem está nas cidades não pode entrar, mesmo que isso paralise uma de suas principais atividades econômicas: o turismo. Rodeados por uma densa floresta que lhes garante fartura de carne de caça e mais o pescado no rio, eles não têm muita necessidade de ir até Marechal Thaumaturgo, município que concentra a maior parte dos Ashaninka do Acre. Com roçados em sistema agroflorestal, obtém farta e diversa produção de frutas e legumes. A macaxeira é a base da dieta alimentar do povo.
Para ter acesso a mantimentos como o sal, café, óleo, açúcar, uma comitiva de indígenas é encarregada de ir até a cidade fazer as compras. Os pedidos são feitos de forma prévia a um comerciante. Antes de serem embarcadas nas canoas para o retorno ao território Kampa, toda a compra é higienizada com álcool em gel para evitar que o vírus viaje junto.
Mas é a preservação da cultura e do modo de vida dos antepassados que têm livrado os Ashaninka de um contágio pelo novo coronavírus. Na tradição Ashenĩka, cada família tem uma casa isolada dentro da floresta, afastada daquelas localizadas às margens dos rios. Caso algum indígena venha a apresentar sintomas suspeitos, o doente fica longe do convívio com os saudáveis, evitando o contágio.
De acordo com a liderança Francisco Piyãko, essa era uma estratégia já seguida pelos antepassados quando das primeiras epidemias que dizimaram dezenas de populações indígenas da América do Sul, durante a invasão europeia do continente. Quando não eram mortos por confrontos de investidas militares contra seus territórios, os sobreviventes desenvolviam doenças que seus organismos não estavam adaptados, causando mortandade. As casas isoladas ajudaram a preservar os Ashaninka.
As aldeias Apiwtxa e Igarapé Arara somam 838 pessoas. Na Terra Indígena Kampa do Rio Amônia está a maior concentração Ashaninka do Acre. Ainda há aldeias pelas bacias dos rios Envira e Tarauacá, mas a maior população está no Peru, de onde vieram aqueles que hoje habitam o lado brasileiro da fronteira.
“O povo Ashaninka do rio Amônia tem uma organização social consolidada, e que representa muito bem o interesse coletivo do povo. São várias lideranças importantes; homens, lideranças mulheres. A nossa associação é orientada por esse grupo de lideranças, e isso faz com que a base, as famílias, sigam as orientações”, explica Francisco.
Esse tipo de organização serve de guia para todas as questões que orientam os interesses coletivos do povo Ashaninka. “Quando se fala da proteção do território tem uma estratégia, da segurança alimentar tem outra. Quando fala dos valores, dos rituais, dos conhecimentos, da educação, da saúde”, enumera Francisco.
O mesmo aconteceu diante da pandemia do novo coronavírus. Os protocolos de entrada e saída da terra indígena, quais as agendas seriam mantidas, assim como o que fazer com os projetos e programas em andamento, tudo passou por discussões coletivas. Uma vez acordado, mais que respeito, houve uma grande compreensão da comunidade diante da gravidade da situação.
Esse isolamento social que já dura 10 meses ocorre apenas com o mundo exterior, e não entre os Ashaninka dentro das aldeias. “O isolamento é para fora. Internamente a gente manteve uma vida normal, e começamos a trabalhar para que aumentasse a nossa produção. Construímos uma agenda que pudesse contribuir para, caso a pandemia durasse mais tempo, a gente estivesse seguro aqui, sem a necessidade de estar em contato com o mundo lá fora”, diz Francisco Piyãko.
A ameaça que veio de fora
O clã Piyãko representa a principal liderança política e social dos Ashaninka nas aldeias Apiwtxa e Igarapé Arara. O patriarca, Antônio Piyãko, é casado com dona Piti, uma ex-seringueira com quem teve sete filhos – sendo cinco homens e duas mulheres. O trabalho de direção da comunidade é encabeçado por Francisco Piyãko, Benki Piyãko e Isaac Piyãko. Este último foi reeleito, em novembro, prefeito de Marechal Thaumaturgo pelo PSD.
E foi justamente o período de campanha eleitoral que representou o de maior risco. Francisco Piyãko foi o primeiro e único Ashaninka do Rio Amônia a se contaminar. O contágio ocorreu na última semana do primeiro turno das eleições, quando ajudava na campanha de reeleição do irmão. Ele afirma que voltou à aldeia, mas mantendo todos os cuidados de distanciamento. Até aquele momento o vírus ainda não tinha se manifestado. Após fazer alguns encaminhamentos com a comunidade, retornou à cidade, onde começou a sentir os sintomas da Covid-19, testando positivo.
“Ninguém na aldeia pegou [a doença], não pegou ninguém da nossa família. Ficou só em mim mesmo. Já estou recuperado, fiz todos os exames, não fiquei com sequelas. Apenas perdi muito peso”, relata Francisco. Os protocolos e os cuidados foram redobrados. O caso dele apenas reforçou a necessidade de manter a vigilância. Conforme a Amazônia Real apurou junto ao Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Alto Rio Juruá e à Coordenação Regional Alto Juruá, da Funai, a TI Kampa do Rio Amônia, de fato, continua sendo a única no Acre a não ter casos da Covid-19.
A saúde indígena do Acre está dividida em dois distritos sanitários: Alto Rio Juruá e Alto Rio Purus. Este último também atende aldeias no sul do Amazonas e noroeste de Rondônia, povoado pelos Kaxarari. Segundo o boletim epidemiológico da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), o Dsei Alto Juruá registra, desde o início da pandemia, 829 casos positivos da Covid-19, com 10 mortes. Já no Alto Rio Purus são 575 infectados e 5 mortes. É sob a jurisdição do Dsei Alto Juruá que está a grande maioria dos indígenas acreanos: 18 mil dos 24 mil.
Os dados da Sesai contam apenas os casos ocorridos dentro das aldeias, não contabilizando os de indígenas nas cidades. De acordo com levantamento da Comissão Pró-Índio (CPI-Acre), que leva em consideração os registros fora das aldeias, a quantidade de contaminados pelo coronavírus no Acre é de 2.375 pessoas, com 27 óbitos. Dos 16 povos indígenas do estado, em 13 a pandemia causou impactos.
Em algumas aldeias localizadas em regiões de difícil acesso, o novo coronavírus não só infectou os indígenas como causou mortes. Na Aldeia Vigilante, na Terra Indígena Kaxinawá do Rio Humaitá, município de Feijó, 26 Huni Kuin foram diagnosticados, em julho, com Covid-19. Um idoso de 83 anos morreu por suspeita da doença, apesar de a causa da morte ter sido oficialmente apresentada como parada cardíaca. O caso acendeu o alerta porque o rio Humaitá, já perto da fronteira com o Peru, é uma área com presença de grupos isolados.
A hipótese é a de que a doença chegou à aldeia por meio de um Huni Kuin que foi até a cidade, e por lá se infectou, transportando o vírus sem saber. Essa foi a forma mais comum da Covid-19 ter se espalhado pelas aldeias de toda a Amazônia, mas não a única. Os próprios funcionários dos Dseis espalharam a doença ao fazer atendimento de campo sem passar por quarentena e entrarem contaminados nas comunidades. (..)