“Se autoridades não tomarem providência, vamos nos deparar com situações piores”. É isso que diz o capitão Gaudêncio Benites, de 41 anos, depois de descrever como foi horrível se deparar com a cena da criança de 11 anos morta na pedreira com sinais de abuso sexual.
O crime na Aldeia Bororó, na segunda-feira (09), é o reflexo do álcool e das drogas, que está infiltrado nas comunidades indígenas de Dourados e não é de hoje. “Sempre digo que 99% dos crimes de violência doméstica, assassinato e suicídio envolve a questão de bebida alcoólica e drogas”, completa.
Apesar de proibido por lei federal, o comércio de bebida alcoólica ocorre indiscriminadamente nas comunidades indígenas. “Venda de bebida é uma coisa que a gente precisa realmente trabalhar isso de haver um órgão de segurança, de achar um meio de fazer com que diminua ou barrar de uma vez”, comenta o capitão.
Guarani-kaiowá, Gaudêncio é nascido e criado na Bororó e entrega o mandato em dezembro, depois de oito anos no comando. Considerada praticamente uma aldeia urbana, é cada vez mais difícil impedir a comercialização de bebidas por lá, pela proximidade com a cidade, explica o capitão e porque “tem até conveniência montada dentro de aldeia e famílias indígenas que vendem em casa mesmo”.
“Eles falam que têm direitos e que não tem lei que proíbe totalmente. A gente sempre vem cobrando as autoridades, mas não há fiscalização mais severa, mais rígida, tanto para quem vende, quanto para quem consome dentro da aleia. Hoje, a gente percebe que está aumentando isso”, pontua Benitez.
Como líder, para reprimir a venda e o consumo exagerado de álcool e drogas, Gaudêncio diz que também fica sujeito à violência. “A gente não tem apoio dos órgãos de fora, não tem Funai, MPF, MPMS e vejo que até Município e Estado também, porque quando se fala de segurança, isso é um dever do Estado, um direito de todos. Também somos cidadãos”, desabafa.
Com cobranças por todos os lados em cima da liderança, Gaudêncio diz que todo trabalho feito na aldeia fica nas costas do capitão. “Enquanto líder, a gente faz papel de todos: de assistente social, de psicólogo, de conselho tutelar, de segurança”.
Quatro envolvidos
“Eu ouvi de uma das meninas que estavam junto, que eles também fumaram pedra. É muito triste, muito triste. Além de ficar chocado, é muito triste a cena. No momento que acontece esse tipo de situação dentro da aldeia, é a liderança quem sempre chega no local para poder entrar em contato com as autoridades”.
Álcool dentro de casa
Sobre os familiares da vítima, o capitão conta que ficaram muito chocados, no entanto, todos eles fazem uso de bebidas alcoólicas. “Enquanto líder, já passamos várias vezes nessa casa chamando atenção. A família toda faz uso de bebida, a gente conversa, aconselha, chama a atenção. Cheguei a falar: ‘para de beber, se continuar bebendo vai acontecer uma tragédia, vocês têm criança”, disse.
Agora, depois do ocorrido, o capitão fala que pela criança vítima nada mais poderá ser feito, mas que a família precisa de uma rede de apoio. “A criança já se foi, mas eles têm várias crianças na residência que precisam sim de apoio psicológico, até mesmo de internação para poder tirá-los dessa vida. Eles não são agressivos, mas ingerem bebida frequentemente”, descreve.
Com pouco mais de 8 mil indígenas só na Bororó, e 18 mil em toda a reserva de Dourados, o capitão pontua que é urgente a necessidade de reforçar a segurança com rondas feitas diariamente, de dia e de noite.
“A gente detém até som para apaziguar, mas os órgãos precisam fazer a sua parte para tentar recuperar. Teria que ter uma punição mais severa para as pessoas que vendem bebida alcoólica para menor, porque sim, até criança compra bebida e toma e eles não estão nem aí”.
O capitão também fala que é preciso responsabilizar os pais que trazem a bebida para dentro de casa e permitem que crianças comecem a fazer uso de álcool.
O corpo da menina foi enterrado próximo à casa onde vivia, porque nem espaço para cemitério a aldeia tem. “Nossa aldeia, em termos de território, é muito pequena e a população vem crescendo. Hoje, não temos terreno suficiente nem para sepultar as pessoas”, resume Gaudêncio.
Solução?
Em 2019, o Ministério Público Federal chegou a se reunir com lideranças indígenas e o Governo do Estado de Mato Grosso do Sul para abordar a situação precária da segurança pública das aldeias indígenas do Estado.
À época, os indígenas já relatavam que se um crime fosse cometido dentro dos limites de uma aldeia ou reserva indígena, seja roubo, furto, violência doméstica ou assassinato, os moradores não encontravam respaldo junto às autoridades.
Desde 2012, o MPF atua judicialmente para que as polícias Civil e Militar cumpram a obrigação de prestar atendimento emergencial às aldeias da região sul do Estado. Em 2017, o MPF, conjuntamente com as defensorias públicas do Estado e da União, ajuizou Ação Civil Pública para que os governos Federal, Estadual e Municipal sejam obrigados a implementar políticas públicas de enfrentamento ao uso de drogas na Reserva Indígena de Dourados.