Indígena da etnia Guarani-Kaiowá e moradora de uma aldeia em Dourados, no interior de Mato Grosso do Sul, Élida de Oliveira, de 48 anos, tinha dado à luz havia apenas oito dias quando teve o bebê levado por agentes de saúde e membros do Conselho Tutelar. Foi acusada de não ser mãe do próprio filho porque ninguém a havia visto grávida na aldeia.
Um teste de DNA feito um ano depois provou o laço sanguíneo entre a indígena e a criança, mas ela não recuperou a guarda do menino. Desta vez, a alegação era de que Élida não tinha condições de cuidar dele, segundo relatórios de assistentes sociais e psicólogos que trabalham para a Judiciário. O menino, então, seguiu longe da família graças a uma medida protetiva concedida pela Justiça.
A Defensoria Pública recorreu e a ação segue em andamento. Enquanto isso, o filho da indígena completou seu terceiro ano de vida em um abrigo, sem nunca ter pisado na Reserva Indígena Dourados, onde a mãe e os seis irmãos vivem, nem ter aprendido Guarani. Entre as poucas palavras em português que Élida consegue pronunciar, repete, aos prantos: “Eu amo ele”, referindo-se ao menino.
Relatos como o de Élida são comuns em aldeias sul-mato-grossenses, principalmente na região de Dourados. Há ainda casos de crianças encaminhadas para adoção por famílias não indígenas – não recomendado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Os relatos levam a reações da Defensoria estadual e da Fundação Nacional do Índio (Funai), que dizem que Justiça e Ministério Público (MP) do Estado violam o ECA em processos de retirada da guarda de indígenas, agindo com preconceito e desconhecimento da cultura dos índios. A Justiça afirma agir para proteger as crianças.
Segundo esses órgãos, uma das violações é a remoção de crianças das famílias sob alegação de negligência dos pais quando o problema é a pobreza, condição que, segundo o artigo 23 do ECA, não pode ser usada para suspender o poder familiar. Outras condutas atribuídas à Justiça e que contrariam o ECA, segundo a Defensoria e a Funai, é encaminhar os menores a um abrigo sem que a busca de parentes próximos seja feita e a conclusão de processos de adoção sem consulta à Funai.
Segundo relatório do órgão, de 2017, que mapeou 65 menores em instituições de acolhimento, 70% das crianças em abrigos da cidade são de origem indígena – que representam só 20% da população local.
Argumentos
Questionado, o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul (TJ-MS) disse não poder se manifestar sobre os processos específicos pois, por envolver crianças, eles tramitam em segredo de Justiça.
Destacou que, em março, a Corregedoria-Geral de Justiça do Estado se reuniu com representantes dos povos indígenas para tratar da adoção de crianças indígenas. Ficou decidido que a Coordenação de Infância e Juventude do TJ-MS montaria estratégia de ação sobre o tema, repassando ao poder público as necessidades de melhorias nas condições dos indígenas. O TJ-MS não informou se a estratégia já foi elaborada.
O juiz da Vara da Infância e Adolescência de Dourados, Zaloar Martins Murat de Souza, nega preconceito ou desconhecimento na conduta da Justiça e diz que suas decisões são baseadas nos relatórios técnicos de assistentes sociais e psicólogos. Ele destaca que esses profissionais trabalham há anos com população indígena e entendem sua realidade. “Tenho de zelar pela preservação da melhor situação para a criança. Nessa questão indígena, estou sempre acionando o poder público para dar a assistência devida, alimentos, vestuário, habitação razoável, mas isso tudo é muito difícil porque depende de recursos e da boa vontade do poder público.”
Psicóloga do Lar Santa Rita, abrigo que cuida de 20 crianças indígenas em Dourados, Daniele Vieira Teles também defende os processos. “Às vezes a gente faz relatórios argumentando a favor da reintegração das crianças aos pais e, meses depois, voltam desnutridas ou com outro problema.”
Parecer
No caso de Élida, parecer do MP considerou “retrocesso” a possibilidade de o garoto ser reintegrado à família. […]”Por toda a sua vida, (a criança) conviveu em uma entidade de acolhimento, com costumes muito diferentes aos da cultura indígena, já estando adaptado a uma realidade, de modo que o retorno às origens, no presente caso, seria um verdadeiro retrocesso”, aponta o documento, que sustenta abandono do filho pela mãe. Procurado pelo Estado, o MP não se manifestou.
“Os assistentes sociais vão até a aldeia, veem que a criança não tem uma cama ou que a família vive numa casa pequena e fazem relatório apontando que não há boas condições”, diz a defensoria pública Neyla Ferreira Mendes. “O Estado entra agindo para retirar a criança e não para ajudar a família.”
“As equipes técnicas nem sempre estão preparadas para entender as particularidades dos indígenas e isso acaba tendo reflexo nos relatórios que vão embasar a decisão do juiz”, afirma Fernando Souza, coordenador regional da Funai em Dourados.
STJ
Em outro processo, referente a irmãos indígenas de uma aldeia na região de Ponta Porã (MS) a Defensoria recorreu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), pedindo nulidade da adoção por uma família não indígena porque a Funai não havia sido consultada. Na resposta do STJ ao pedido dos defensores, o tribunal reconhece a falha do Judiciário, por não haver consultado a Funai.
Mas a Corte negou o recurso pelo fato de as crianças já estarem com os pais adotivos há 4 anos e adaptadas à nova família. O recurso foi movido porque a avó dos indígenas tinha interesse em ficar com as crianças, o que foi negado pelo Judiciário do Mato Grosso do Sul.