Primeiro vestibular do Brasil aplicado em aldeia reúne nove etnias

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Candidatos indígenas prestam vestibular. Os estudantes disputaram uma das 50 vagas para o curso de licenciatura em educação básica intercultural da Universidade Federal de Rondônia - Maíra Bittencourt

Pelas águas do Rio Guaporé, que banha os estados do Mato Grosso e Rondônia e demarca a divisa do Brasil com a Bolívia, navega a equipe de professoras com as provas do vestibular. Josélia Gomes Neves, docente da Universidade Federal de Rondônia, viajou seis horas pela estrada e mais quatro pelo rio para chegar na aldeia Ricardo Franco, no sudoeste do estado de Rondônia. Ela conta que foi justamente por essa dificuldade de acesso que a aldeia foi escolhida para ser a primeira terra indígena a receber um exame de vestibular. “Nós estamos fazendo o caminho que todos eles precisariam percorrer para chegar na universidade. Esses alunos chegam lá em condições diferentes dos demais para prestar esse tipo de exame. Aplicar a prova aqui é oportunizar condições mais justas para esses candidatos ao ensino superior”, diz a professora.

Essa aldeia foi formada por índios que migraram de suas terras na região do Rio Branco durante os anos 70, quando houve um forte processo de escravidão indígena no ciclo dos seringais. Por isso, a primeira escola começou a funcionar na nova área somente em 1984. Mesmo assim, nesse período o ensino básico não era para todos. Vandete Djeoromitxi só teve a oportunidade de ser alfabetizado com 13 anos. Mas depois não largou mais os estudos. Formou-se em 2015 no curso de licenciatura em educação básica intercultural e hoje é professor na aldeia. “A educação para mim é tudo. Eu era uma pessoa antes de estudar, hoje sou outra. Eu sempre falo para minha comunidade que a gente precisa estudar para defender nossa comunidade.”

Formada na mesma turma de Vandete, Maísa Macurapi, que é diretora da escola de educação básica da aldeia, explica que além da barreira educacional e cultural o povo possui poucos recursos para deslocamento. “Nós queríamos que o vestibular fosse realizado aqui na aldeia porque a dificuldade de se deslocar daqui até a universidade é muito grande. Gasta-se muito combustível e para se manter lá também é muito caro.” Atualmente vivem na comunidade cerca de 500 pessoas de 11 etnias diferentes. Há ainda mais duas aldeias próximas, a da Bacia das Onças e a Sagarana, o que totaliza quase 1.000 indígenas e 13 etnias.

Gleiciane Canoé estudou magistério e leciona para crianças do primeiro ao quarto ano. Em 2013 prestou vestibular pela primeira vez, mas não foi aprovada. Desistiu de tentar novamente por falta de condições financeiras para o deslocamento para cidade. “Eu quero dar continuidade em meu estudo para que eu possa trazer mais novidade para os meninos de minha turma, que estão precisando muito. Quando eu soube que ia ter vestibular aqui eu até me assustei, porque todos os vestibulares são na cidade. Quando falaram que ia ser aqui, pensei: eu vou me inscrever o mais rápido possível porque não quero perder.”

Robson Arowa também é professor no ensino básico indígena, mas não na mesma escola de Gleicine. Ele é morador da aldeia vizinha, a Sagarana. Para fazer a prova na terra, Ricardo Franco fez uma viagem de duas horas de moto. Como não existem estradas oficiais que ligam as áreas indígenas, precisou improvisar pontes com madeiras encontradas no caminho, para assim cruzar os igarapés. Faltando meia hora para o início da prova conseguiu chegar ao local. “Se a gente não tivesse saído cedo não tinha chegado aqui. A gente enfrenta esses obstáculos para conquistar coisas para os povos indígenas. Entrar para o curso da universidade nos permite avançar.”

Se inscreveram no processo seletivo 437 candidatos indígenas. A prova ocorreu no domingo 12 de agosto, em seis municípios do estado de Rondônia simultaneamente. Os estudantes disputaram uma das 50 vagas para o curso de licenciatura em educação básica intercultural, da Universidade Federal de Rondônia. A relação é de nove candidatos por vaga. A prova foi composta de 20 questões de conhecimentos gerais situadas em problemáticas indígenas e uma redação com a temática da educação escolar indígena a partir das Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a LDB.

Nacom Arowa prestou vestibular pela primeira vez e saiu animada da prova. “A redação estava fácil. Eu acredito que vou conseguir passar, porque é meu sonho estudar no curso de educação intercultural.”

Desde 2000, oito universidades públicas realizam provas de vestibular específicas para os povos indígenas, mas essa é a primeira vez que os alunos não precisam ir até a universidade. Essa aproximação com as comunidades gera entusiasmo até mesmo para aqueles que ainda estão longe de escolher uma carreira. Gisele Canoé tem 11 anos e, vendo a família envolvida com o vestibular, já sonha em estudar para se tornar dentista. “Eu gosto muito da escola, quero continuar estudando para ser dentista.”

Por Maíra Bittencourt/Época

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