Evangelização de índios por índios se alastra e provoca críticas

0
2317
Pastor Edimar, Pastor Jader e Pastor Jonas Foto: FolhaPress

 

 

Com pais evangélicos, Jader de Oliveira já cresceu ouvindo a palavra de Deus. Aos 19, decidiu aceitar Jesus como senhor. Aos 25, resolveu se tornar pastor. Hoje aos 56, nada mais natural do que continuar se dedicando à expansão do Evangelho.

Com esse nome, sua história poderia ser confundida com a de um missionário branco, mas a pele morena, os olhos puxados e o cabelo liso e preto deixam clara sua origem terena, etnia indígena que há mais de cem anos já convive com a religião em Mato Grosso do Sul.

O pastor representa uma geração que vem conduzindo o que alguns evangélicos apelidaram de terceira onda missionária: movimento em que os próprios índios buscam evangelizar seus “patrícios” (outros índios).

O termo, cunhado pelo Conplei (Conselho Nacional de Pastores e Líderes Evangélicos Indígenas), considera que houve outras duas ondas anteriores no país.

A primeira, de estrangeiros evangelizando indígenas, que teria começado na década de 1910. E a segunda, de brasileiros evangelizando indígenas, com início nos anos 1950.

A ideia de ondas é questionada por parte dos religiosos -inclusive Jader-, porque a prática já acontece há mais de 40 anos de maneira pulverizada, e também por alguns pesquisadores, pois seria um movimento restrito.

Fato é que as estratégias para chegar a esses povos parecem estar dando resultados. A porcentagem de indígenas que se declaram evangélicos saltou de 14% em 1991 para 25% em 2010, acima dos brasileiros em geral, segundo o IBGE. Em 2018, pesquisa Datafolha apontou uma proporção de 32%.

Por trás dos números está um debate polêmico e antigo, que voltou à tona com a eleição do presidente Jair Bolsonaro (PSL) e a escolha da pastora evangélica Damares Alves como ministra da nova pasta da Mulher, Família e Direitos Humanos, que agora abriga a Funai (Fundação Nacional do Índio).

Ambos já indicaram que pretendem rever a política de isolamento de indígenas, o que causou temor em indigenistas da Funai responsáveis pelos povos isolados e de recente contato na Amazônia Legal.

A fundação diz que hoje não autoriza que pessoas entrem em reservas para trabalhos missionários, a menos que essa seja uma demanda da própria comunidade.

Diante das dificuldades no acesso de missionários não indígenas, organizações como o Conplei e a AMTB (Associação de Missões Transculturais Brasileiras) propõem a liderança dos índios como nova estratégia para levar a mensagem do Evangelho às etnias não alcançadas no país, que eles estimam ser 102.

“A pessoa que está no contexto é a melhor peça para fazer esse trabalho”, atesta o pastor sul-coreano Joshua Chang, 53. Ele trabalha junto ao Conplei e é idealizador do Green Window, projeto que pretende chegar a 200 povos isolados localizados na “janela verde” -região da linha do Equador com florestas tropicais.

“Assim, as três ondas, estrangeira, nacional e indígena, chegariam juntas com a força de um tsunami espiritual para que a mensagem salvífica do Evangelho chegue até aqueles que vivem em lugares distantes e restritos”, diz um livro de apresentação do conselho de pastores.

Para pastores indígenas, as vantagens de se ter índios nas missões são claras, mesmo com as amplas diferenças entre etnias. “Se oferecerem um verme de madeira vivo, para nós é comum. Se precisar dormir no mato, dormimos. Olhamos a natureza da mesma forma, temos uma cultura oral, de comunidade”, diz Jader.

“A relação do índio com o índio é bem mais aberta. Com o não índio, precisamos primeiro fazer uma leitura da pessoa”, diz o pastor Edimar Pereira, 40, ao lado de sua igreja na aldeia Córrego do Meio (a uma hora de Campo Grande), onde 90% dos cerca de 500 índios terenas são cristãos.

A 30 km dali, fica aquela que é considerada a primeira instituição com foco no preparo de líderes indígenas evangélicos, o Instituto Bíblico Cades Barnéia. A casa, sob direção de índios desde 1980, oferece ensinamentos bíblicos e missionários aos jovens.

São três anos de curso teórico e prático, o que inclui idas periódicas a outras aldeias já evangelizadas ou não. 

O instituto pertence à Uniedas, união de igrejas evangélicas presidida por Jader e formada apenas por pastores indígenas, pioneira em mandá-los às missões.

Entre as estratégias para unir os indígenas cristãos e atrair outras igrejas evangélicas à causa estão congressos nacionais, regionais e voltados aos jovens. 

O último evento nacional, em outubro, reuniu mais de 2.000 pessoas, incluindo oito etnias de outros países.

Também são feitos treinamentos de indígenas tradutores da Bíblia pelo país -58 de 181 línguas tinham algum tipo de tradução evangélica em 2010, segundo levantamento da AMTB.

De um lado, igrejas e líderes indígenas argumentam que as missões levam a esses lugares serviços de educação e saúde e que a religião não é imposta, e sim apresentada. Também defendem que ela ajuda a preservar a língua e a cultura desses povos, muitas vezes já prejudicadas pelo contato com as cidades.

“Na cultura indígena, o Evangelho vem para valorizar a pessoa, tirar coisas que entraram de fora como o álcool e as drogas e reforçar a cultura inicial, que é de uma família bem estabelecida”, diz o pastor Juliano Modolo.

Ele ajuda jovens indígenas a se integrarem nas universidades com um projeto chamado Apoio Jovem.

“Eu sempre fui e continuo sendo índio, vivendo da mesma forma”, afirma o pastor Jonas Reginaldo, 59, há 34 anos à frente da igreja da aldeia Limão Verde (a 2h30 de Campo Grande).

“Apresentar o Evangelho é um risco para a sociedade indígena, mas ter uma antena parabólica, não?”, questiona o pastor Edimar.

Do outro lado, indigenistas, pesquisadores e funcionários da Funai acusam os missionários de alterar ritos e visões ancestrais indígenas, e consequentemente sua cultura e organização, ao inserir os valores cristãos.

 

O antropólogo Felipe Milanez, que estuda o tema há 12 anos e é professor de Humanidades na Universidade Federal da Bahia (UFBA), diz que a prática vem acompanhada do que chama de “racismo cordial”.

“É a imposição de uma única forma de ver o mundo, uma visão extremista como a do Estado Islâmico: ou se converte ou está condenado”, afirma Milanez. 

“Se usa o discurso da liberdade de pregar como se isso não fosse violento, e tenta-se justificar a conversão pela ajuda humanitária, que é secundária”, diz.

Com informações da Folhapress.

Envie seu Comentário

Please enter your comment!
Please enter your name here