Duas decisões da Justiça Federal em Mato Grosso do Sul a favor da demarcação de terras do povo Guarani Kaiowá vêm sendo manipuladas pela elite agrária do estado como se fossem derrotas dos indígenas. Uma das terras é Ñande Ru Marangatu, que chegou ao último estágio do processo de demarcação em 2005, após 30 anos de luta dos Guarani Kaiowá, mas estava barrada por processos judiciais de fazendeiros há mais de 20 anos, que pediam a anulação da demarcação.
A ação envolvendo Ñande Ru Marangatu trata de um pedido de nulidade do processo administrativo de demarcação interposta por fazendeiros em desfavor dos Guarani Kaiowá, Fundação Nacional do Índio (Funai) e União, não concedido pela juíza Carolline Scofield Amaral. A segunda decisão nega um pedido de reintegração de posse sobre área da Terra Indígena (TI) Jaguari, homologada desde 2012.
No despacho, a juíza afirma que o processo de demarcação de Ñande Ru é válido, mas, contraditoriamente, reitera o domínio de fazendeiros sobre a área alvo da ação, cobra indenização a eles por danos morais e materiais e determina a retirada dos indígenas pela Funai depois que o processo transitar na última instância.
“A juíza legitimou o domínio dos fazendeiros na área. Em contraponto, ela validou o processo administrativo de demarcação feita pela Funai com base no Decreto 1775/96. Então, se ela validou a demarcação, por força do parágrafo 6 do artigo 231 da Constituição Federal, ela anulou os títulos, o domínio e a posse”, explica o advogado do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Mato Grosso do Sul, Anderson Santos.
A comunidade Guarani Kaiowá, representada pela Assessoria Jurídica do Cimi, entrou com recurso contra a decisão da magistrada. Segundo os embargos de declaração apresentados, “se o procedimento demarcatório é válido, logo a terra é de ocupação tradicional indígena, sendo consequência lógica a automática nulidade de todos os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse da Terra Indígena”.
A sentença da Vara Federal de Ponta Porã extrapola ainda o objeto da ação. “Os fazendeiros não pediram a retirada dos indígenas, por exemplo. Eles pediram para anular o procedimento de demarcação com base na declaração do domínio. Ou seja, declarar o domínio invalidaria a demarcação, mas a demarcação sequer foi invalidada. Por que, então, essa determinação pela retirada dos indígenas?”, questiona o advogado do Cimi.
“No começo não entendemos bem, parecia que não era bom, mas depois percebemos que foi uma vitória porque não anulou a demarcação. Vamos recorrer ao que não está direito e seguir com a nossa luta”, diz Inaye Gomes Lopes Guarani Kaiowá. A indígena mora no tekoha – lugar onde se é – Ñande Ru Marangatu e acompanhou de perto a luta do povo pela terra.
Duas décadas de tramitação
Os processos tramitam na Justiça Federal há mais de 20 anos. “Nós já esperávamos que não teríamos muitas chances na Justiça de Ponta Porã, mas ficamos felizes pela demarcação não ser anulada. Já é um avanço”, conta Inaye Guarani Kaiowá.
Um dos momentos mais dramáticos dessa história recente de Ñande Ru foi o assassinato de Simião Vilhalva, em 1º de setembro de 2015. Um mês antes, no início de agosto de 2015, os Guarani Kaiowá retomaram cinco fazendas incidentes na Terra Indígena homologada em 2005, dez anos antes, mas com os efeitos do decreto presidencial suspensos pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Entre as fazendas retomadas estava a Barra, de propriedade da família de Roseli Silva, entre outras vizinhas, caso da Fronteira. Roseli era presidente do Sindicato Rural de Antônio João.
Na manhã de sábado, 29 de agosto, a fazendeira convocou uma reunião na sede do sindicato.
Conforme noticiou o site Dourados News, Roseli abriu e fechou rapidamente a reunião e “se dirigiu a uma de suas propriedades rurais da região do distrito de Campestre” (29/08/2015). Cerca de 100 homens armados em 40 caminhonetes acompanharam Roseli para a fazenda Barra e Fronteira retomadas pelos Guarani Kaiowá.
Momentos depois uma nuvem de fumaça subiu na área retomada pelos Guarani Kaiowá: era o início do ataque. Na confusão gerada, os Guarani Kaiowá se dispersaram. Simião, no momento em que recebeu o tiro fatal na cabeça, estava às margens de um córrego, à procura de seu filho.
Por conta destes anos de retomadas, a juíza considerou que os indígenas causaram prejuízos aos proprietários rurais e condenou a União, a Funai e a comunidade indígena ao pagamento de indenização por danos morais de R$ 150 mil para cada autor da ação, num total de 84 fazendeiros, e ao ressarcimento dos danos materiais.
União, Funai e comunidade Guarani Kaiowá podem recorrer da decisão às instâncias superiores. “Foram retomadas dentro do território demarcado. Também não destruímos nada dos fazendeiros, da Roseli, e também não pegamos o gado deles, não”, explica Inaye Guarani Kaiowá. “E o Simião, quem vai ressarcir pra gente?”, questiona.
De qualquer maneira, a decisão judicial manteve a validade da demarcação da terra indígena, “pois se verificou que o processo administrativo de demarcação foi hígido, houve a sucumbência recíproca das partes”, conforme texto do comunicado emitido pela Justiça Federal.
“Nosso Ñande Ru é um dos tekoha tradicionais, dos antigos, tudo isso foi comprovado e concluído, mas o governo agiu com má-fé e essa gente foi entrando. O tekoha sempre foi nosso”, explica Inaye Guarani Kaiowá.
Jaguari
No caso da TI Jaguari, se tratou de uma ação de reintegração de posse proposta em 1992 pelos proprietários das Fazendas São Bento, Glebas II, V e X. Os fazendeiros alegam que o procedimento de demarcação “feriu os princípios do devido processo legal, contraditório e da ampla defesa, uma vez que não foram intimados a participarem do processo administrativo”.
“Conforme comprovado nos autos, a presença indígena na área do Jaguari é inconteste e antecede aos primórdios de 1600; em 1991, um grupo técnico, sob a direção do antropólogo Alceu Cutia Mariz, realizou estudos relativos à área indígena sub judice, tendo concluído se tratar de terra imemorial tradicional indígena”, diz trecho do comunicado sobre as decisões da Justiça Federal.
Como a demarcação de terra foi homologada pelo Decreto de 21/05/1992, obedecendo todos os trâmites legais, o ato administrativo, na decisão da juíza, preencheu todos os requisitos quanto à legalidade, não podendo ser declarado nulo. Sendo assim, o processo foi extinto sem resolução de mérito no tocante ao pedido possessório e, em relação aos demais pedidos, julgado improcedente.