Indígenas são resgatados em condição análoga à de escravo na zona rural de Itaquiraí

0
224
Grupo foi aliciado para colheita de mandioca e dormia em alojamento precário

Os desafios atuais derivados da pandemia de Covid-19 não afastam adversidades históricas como o enfrentamento do trabalho análogo ao de escravo. No fim de junho, durante operação conjunta solicitada pelo Ministério Público do Trabalho em Mato Grosso do Sul (MPT-MS), auditores-fiscais do Ministério da Economia e representantes da Polícia Militar Ambiental resgataram 24 trabalhadores indígenas da etnia Guarani Kaiowá, submetidos a condições degradantes em uma fazenda localizada no Município de Itaquiraí. No grupo, havia quatro adolescentes, além de familiares, incluindo seis crianças com idade entre dois e 15 anos.

Conforme apurado pela fiscalização do trabalho, os indígenas foram aliciados por um empreiteiro que ofereceu R$ 100/dia para colheita de mandioca. No local, os auditores identificaram diversas irregularidades: alojamento precário, formado por cômodos pequenos com colchões velhos espalhados pelo chão; falta de ambiente adequado para preparo e consumo de refeições; uso de fogareiros e fogões a gás no interior de cômodos que serviam como dormitórios; ausência de registro em carteira; não fornecimento de equipamentos de proteção individual; moradia coletiva de três famílias em apenas um espaço; condições precárias de higiene em ambientes com intensa aglomeração, assim como ausência de medidas de prevenção à Covid-19. Os indígenas também eram obrigados a adquirir mercadorias superfaturadas em supermercado perto da propriedade rural e a pagar aluguel pelo alojamento, além de terem custeado o transporte das aldeias Amambai, Cerrito, Limão Verde e Porto Lindo até a fazenda.

De imediato, os trabalhadores receberam os valores correspondentes às produções auferidas pela atividade de colheita de mandioca e retornaram sem custos às aldeias de origem, localizadas em Amambai, Japorã e Eldorado. No último dia 10, o proprietário da fazenda foi notificado pelo procurador Jeferson Pereira, do MPT-MS, para que encaminhe os comprovantes de pagamento das verbas rescisórias dos indígenas, bem como as cópias das guias de recolhimento previdenciário e fundiário em relação aos trabalhadores. O empregador ainda deverá demonstrar a anotação dos vínculos diretos de emprego com os trabalhadores.

De modo paralelo, os auditores-fiscais do Trabalho cadastraram os dados dos indígenas resgatados junto ao portal www.gov.br/trabalho/pt-br, para fins de concessão do auxílio Seguro-Desemprego Trabalhador Resgatado (três parcelas, cada uma no valor de um salário-mínimo) e lavraram autos de infração que serão entregues ao empregador na próxima semana. Já o Ministério Público do Trabalho adotará as providências cabíveis para responsabilização trabalhista do infrator e garantia dos direitos das vítimas. Medidas para responsabilização criminal devem ser empreendidas pelo Ministério Público Federal.

Escravidão moderna

Até o século XIX, pelourinhos, açoites, grilhões estavam intimamente associados à figura do trabalhador escravo. Chegado o século XXI, os flagelos físicos não mais servem como parâmetros para identificar a escravidão. Agora, o indivíduo tem sua autonomia restringida por circunstâncias de trabalho que, de tão humilhantes, suprimem sua dignidade enquanto pessoa.

Em Mato Grosso do Sul, a escravidão moderna se concentra no meio rural e pode ser reconhecida quando constatada a submissão a trabalhos forçados, a jornadas exaustivas, a condições degradantes de trabalho ou a servidões por dívida. Trata-se de formas de exploração que violentam a própria natureza humana dos trabalhadores, ao subtraírem os mais básicos direitos, como alimentação, higiene e exercício de um trabalho digno.

Conforme o Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas, uma ferramenta digital desenvolvida pelo MPT e pela Organização Internacional do Trabalho-Brasil, entre 2003 e 2018, mais de 2,6 mil pessoas foram resgatadas em condições análogas às de escravo no Estado de Mato Grosso do Sul, o que corresponde a uma média de 167 vítimas por ano. O perfil dos casos também comprova que o analfabetismo ou a baixa escolaridade tornam o indivíduo mais vulnerável a esse tipo de exploração, já que em torno de 60% das vítimas no estado se declararam analfabetas. A maioria é do sexo masculino, com idade que varia entre 18 e 24 anos. Quase 90% das vítimas eram trabalhadores agropecuários.

O Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil, do Ministério da Economia, mostra que desde 1995 o governo brasileiro flagrou mais de 54 mil pessoas laborando como escravos modernos.

O combate ao trabalho escravo moderno exige a adoção de medidas positivas pelo Estado, contemplando a implementação de ações preventivas e de repressão. A exploração de trabalhadores nessas situações gera repercussões administrativas, cíveis e criminais. As penalidades vão desde multas administrativas aplicadas por auditores-fiscais até a responsabilização do empregador pelo crime previsto no artigo 149 do Código Penal brasileiro, com pena de reclusão de até oito anos.

Em outubro de 2016, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, uma instituição judicial autônoma da Organização dos Estados Americanos (OEA), responsabilizou internacionalmente o Estado brasileiro por não prevenir a prática de trabalho escravo moderno e de tráfico de pessoas. A sentença decorreu de um processo envolvendo a Fazenda Brasil Verde, no sul do Pará. O Brasil foi o primeiro país condenado pela OEA nessa matéria.
 
Segundo dados apresentados pela Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério da Economia, somente em 2019 foram encontrados no país 1.054 trabalhadores em condições análogas à escravidão e fiscalizados 267 estabelecimentos. As informações são da plataforma Radar. Embora o número seja menor do que o registrado em 2018 (1.745 trabalhadores), a quantidade de estabelecimentos fiscalizados aumentou, uma vez que no ano anterior foram inspecionados 252 locais.

Referente ao procedimento PP 000163.2020.24.001/5-18

Fonte: Ministério Público do Trabalho em Mato Grosso do Sul

Envie seu Comentário

Please enter your comment!
Please enter your name here